Reflexão para domingo, 19 de fevereiro de 2023

Referente ao perícope do Evangelho de Mateus 4, 1-11

No Antigo Testamento fala-se pela primeira vez na tentação quando a serpente (Lúcifer) insiste para que Eva coma do fruto da árvore do conhecimento do Bem e do Mal.

Eva viu que o fruto era atrativo aos sentidos e o saboreou, entregou-o também a Adão, para que o comesse.

A tentação no Paraíso começa com a atração do ser humano por certo alimento. Um alimento que lhe apetece.

Ao comê-lo seus olhos se abrem, ou seja, os sentidos humanos se direcionam com maior intensidade para a realidade sensorial do mundo.

Se antes Adão e Eva viam diretamente a Deus, depois de haver comido do fruto da árvore do conhecimento, perdem este contato imediato com Ele e precisam deixar o Paraíso.

O fruto da árvore do conhecimento possibilita ao ser humano mergulhar com maior profundidade no seu organismo físico e por conseguinte seus sentidos para o mundo exterior se abrem, ao mesmo tempo que os sentidos para o mundo divino (Paraíso) começam a se fechar.

O impulso para provar da árvore do conhecimento, porém, provém do âmbito inconsciente do sistema digestivo (“o fruto apetitoso, bom para comer”).

Os alimentos que comemos ajudam a unir nosso organismo corpóreo com a própria Terra, nos dão força e disposição. Ao mesmo tempo nos ajudam a estar vigilantes na consciência e ser capazes de usar nossos sentidos para investigar e compreender o mundo que nos rodeia.

Este é o caminho da encarnação do ser humano na Terra. Neste caminho fomos nos afastando cada vez mais dos céus.

Nos afastamos tanto que hoje, na maioria das vezes, não temos dúvidas que somos cidadãos da Terra, mas vivem em nós muitas questões quanto à nossa origem celeste e se um dia retornaremos à pátria divina ou se sucumbiremos, seguindo o mesmo destino da matéria do mundo, que compõe nosso corpo físico.

Para trazer à humanidade uma nova possibilidade de retornar ao mundo celeste, ou à Casa do Pai, como é chamada nos Evangelhos, Cristo veio ao mundo.

Logo após o Batismo no Rio Jordão, Cristo vai ao deserto. Ali ele é tentado.

Nesta cena do Evangelho de Mateus temos uma descrição imaginativa do processo que se repete desde a cena descrita no início do Antigo Testamento.

Cada espírito humano que se encarna, entra numa relação mais profunda com seu organismo corpóreo. Seus sentidos se abrem cada vez mais intensamente para perceber o mundo físico, mas ao mesmo tempo percebe que o seu próprio corpo também reclama por algo que somente se supre por meio do alimento.

A vida no espírito não necessita do alimento terreno. O corpo, porém, precisa dele.

O tentador apelou principalmente ao lado instintivo que o alimento provoca. No princípio, identificado como serpente no Paraíso, ele confundiu Eva e lhe disse que se comesse não sofreria as consequências da encarnação no organismo corpóreo.

Na descrição de Mateus o tentador almeja mais uma vez confundir os âmbitos, pois a partir do instinto da fome, que surge do organismo corpóreo, ele quer direcionar a essência divina de Cristo (“Tu, que és o Filho de Deus”) a identificar-se com a essência terrena (“Transforma estas pedras em pão”).

Cristo tem plena consciência do que está passando e coloca as coisas no seu devido lugar:

“Não só de pão vive o homem” (apenas seu organismo corpóreo),

“mas de toda palavra que provém da boca de Deus” (pois este é o alimento do Espírito).

No Antigo Testamento foi descrito o caminho dos Céus a Terra.

A partir da tentação no deserto, Cristo nos mostra o caminho para reencontrar o acesso ao mundo divino: não permitir que nossa essência divina se confunda com a terrena. Dar ao Espírito o alimento que lhe é necessário.

Então será possível que os seres humanos, pouco a pouco, recomecem a abrir os olhos da alma para enxergar de novo o Paraíso que abandonou há tanto tempo.

Renato Gomes