Curso de Imersão: Sexta-feira Santa

No sexto dia da criação Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança. “
Agora a criação chega à sua meta, a criação do homem à imagem e semelhança divina. Mas a criação chega também a um paradoxo. Tudo o que foi criado é criatura. Deus é aquele que criou. Ele não é criatura, é o Criador. O homem, como ser criado por Deus, também é criatura. Mas para ser semelhante a Deus, teria que ser criador e não somente criatura. Esse é o paradoxo da criação: como é possível criar uma criatura que seja também criador?
A solução para esse problema está em que nós, seres humanos, vivemos em dois níveis. O primeiro é o nível do nosso corpo. Nesse nível somos seres da natureza, somos criaturas, criadas por Deus. O segundo nível no qual vivemos é o da nossa alma, do nosso eu. Nesse nível anímico-espiritual, nós não somos apenas criaturas, como o somos em relação ao nosso corpo. Isso se torna nítido quando vemos que o nosso corpo se desenvolve em processos naturais de crescer e fenecer. A nossa biografia, o nosso desenvolvimento anímico-espiritual acontece também em rítmicos naturais, válidos para todas as pessoas. Mas só em parte, somente nos processos que estão vinculados com o desenvolvimento do corpo. Além disso, nós temos também um desenvolvimento individual na biografia, um processo de aprendizado e amadurecimento que não é determinado pela natureza. São momentos onde o desenvolvimento anímico-espiritual depende de cada um, depende do que queremos aprender da vida e se queremos, ou não, mudar algo no nosso modo de ser. Em grande parte, o desenvolvimento anímico-espiritual de cada um de nós está colocado diante da nossa liberdade e responsabilidade. O que acontece na vida muitas vezes não temos a possibilidade de determinar. Mas o que aprendemos a partir dos acontecimentos, e quais frutos colhemos para o nosso desenvolvimento anímico-espiritual, é sempre uma decisão individual, está sempre na esfera da nossa liberdade.
Nós fomos criados por Deus e, como toda a natureza, também somos criaturas. Mas nos seres humanos Deus semeou um impulso que o eleva a um outro nível, acima da natureza, o dirige à semelhança divina. Temos em nós o impulso, a potência de nos desenvolvermos a nós mesmos, de desenvolver o nosso eu. E a qualidade do eu conquistamos quando conseguimos ter o motivo das nossas ações em nós próprios, e não só no cumprimento de leis naturais ou sociais. Quando conseguimos ser criativos, e não só repetir algo que foi determinado pelo passado. Também quando assumimos a responsabilidade pelos nossos atos. E a maior responsabilidade que podemos assumir é a responsabilidade pela criação do humano em nós. A maior ação criadora que podemos ter é a criação do nosso próprio eu. E a maior atividade que podemos ter é a partir desse eu, que não reage àquilo que vem de fora, mas age a partir de si, em responsabilidade por ser co-criador de um futuro mais humano.
O sexto dia da criação ainda não terminou, ele está acontecendo continuamente. Nós somos seres criados por Deus, somos criaturas. Mas temos em nós a potência de nos tornarmos semelhantes a Deus, assumindo a tarefa de elevarmos nosso eu a um nível humano, e assim divino.
Na Sexta-feira Santa Jesus Cristo foi julgado e condenado à morte, foi açoitado, coroado com uma coroa de espinhos, carregou sua cruz e foi crucificado. Ele, que era inocente. A consequência natural para esta injustiça seria a vingança. Mas a partir das forças do perdão, das forças do amor, Jesus Cristo humanizou a vingança, transformou a consequência natural em impulsos para a criação de uma nova realidade, uma realidade humana.
A consequência do julgamento injusto foi transformada em um impulso que agora está semeado na alma de cada um de nós: a possibilidade de julgar-se a si mesmo. Não um julgamento a partir de leis morais ou sociais impostas de fora. Essa é a forma de julgamento antes do Cristo. O impulso do Cristo é a possibilidade de que cada um possa ter um sentimento de autenticidade consigo mesmo. Essa é a voz da consciência que está semeada na alma de cada um de nós.
A consequência de que Jesus Cristo foi açoitado se transformou na vivência de se sentir interiormente tocado por Ele. Muitas vezes podemos ter hoje essa experiência. Mas não podemos nos deixar entorpecer pelo estresse do dia a dia ou por entretenimento. É como sentir no seu íntimo que alguém está batendo suavemente na porta da nossa alma, tentando nos despertar, tentando chamar a atenção para a importância da qualidade humana na nossa vida.
A consequência da coroação do Jesus Cristo com uma coroa de espinhos foi transformada na possibilidade de recebermos inspirações que nos leve a solucionar problemas que temos na realização dos ideais humanos. Essas inspirações acontecem muitas vezes quando um grupo de pessoas se esforça para trabalhar juntas e realmente se abrem para essa esfera. É da qualidade de Pentecostes que precisamos, para que as ideias que temos não sejam meros produtos da nossa intelectualidade, mas impulsos que tenham sua origem no Cristo.
A consequência de Jesus Cristo ter carregado a sua cruz foi transformada na força que nos ajuda a carregar o nosso próprio destino. Muita vezes podemos vivenciar a nossa impotência perante os desafios da vida e são momentos preciosos quando notamos que ganhamos uma força para seguir em frente, carregar a nossa cruz.
Quando Jesus Cristo estava na cruz Ele disse: “Pai perdoa-os, pois eles não sabem o que fazem. “
A consequência da crucificação de Jesus Cristo foi transformada numa nova e muito sutil clarividência cármica. Na nossa época as almas estão desenvolvendo um sentimento de começar a perceber quais serão as consequências cármicas para aquilo que estamos fazendo no momento. Se começarmos a prestar atenção para esse fenômeno perceberemos que muitos de nós já têm esse sentimento. Existem momentos em que estamos prestes a fazer algo e, de maneira quase que imperceptível, surge um sentimento das consequências que isso trará para o relacionamento com uma outra pessoa. Quanto mais prestarmos atenção a essas percepções, mais estaremos conscientes das consequências dos nossos atos e, assim, realmente seremos livres para decidir e assumir a responsabilidade por aquilo que fazemos. Iremos saber sempre mais sobre as consequências do que fazemos.
As transformações das consequências naturais do que Jesus Cristo sofreu na Sexta-Feira Santa não são especulações. A transformação da vingança em impulsos para a formação de uma nova realidade humana, a partir das forças do perdão e do amor, podem ser observadas em um âmbito espiritual e foram descritas por Rudolf Steiner. Para nós é possível vivenciar na própria alma a presença desses impulsos para que possamos ser co-criadores de um ser humano semelhante ao Divino.

João F. Torunsky