Reflexão sobre o Salmo 29

“Dai ao SENHOR, ó filhos dos poderosos, dai ao SENHOR glória e força.
Dai ao Senhor a glória devida ao seu nome, adorai o Senhor na beleza da santidade.
A voz do Senhor ouve-se sobre as suas águas; o Deus da glória troveja; o Senhor está sobre as muitas águas.
A voz do Senhor é poderosa; a voz do Senhor é cheia de majestade.
A voz do Senhor quebra os cedros; sim, o Senhor quebra os cedros do Líbano.
Ele os faz saltar como um bezerro; ao Líbano e Siriom, como filhotes de bois selvagens.
A voz do Senhor separa as labaredas do fogo.
A voz do Senhor faz tremer o deserto; o Senhor faz tremer o deserto de Cades.
A voz do Senhor faz parir as cervas, e descobre as brenhas; e no seu templo cada um fala da sua glória.
O Senhor se assentou sobre o dilúvio; o Senhor se assenta como Rei, perpetuamente.
O Senhor dará força ao seu povo; o Senhor abençoará o seu povo com paz.”

Salmo 29

Os sete trovões

Uma forte tempestade está se aproximando do mar. O olhar piedoso do Antigo Testamento vê nas manifestações da natureza lá fora uma solene antecipação, pois é esperada uma grande revelação. Um relâmpago cintila no céu rasgando as nuvens. Ele também rasga uma cortina sobre o olho que o observa. A alma sabe que não está mais no âmbito da Terra, mas sim vivenciando um culto no céu, tal como é celebrado pelos habitantes dos mundos superiores.

Voltando à Terra, a alma agora, consagrada pela visão, é capaz de dar o nome correto: “A voz do Senhor” — (qôl Yahweh). — Para os hebreus essa era uma designação de trovão. Sete vezes esse chamado “qôl Yahweh” soa no Salmo 29.

A voz de Yahweh sobre as águas — a memória surge no início da criação, como o espírito de Deus uma vez pairou sobre as águas. Do mar para a terra. O que se solidificou e endureceu no âmbito da Terra é o que no início ainda era um mar formativo. O mundo do que se tornou treme diante da palavra criativa do Altíssimo. O que tomou forma na terra parece questionado quando o Eterno fala novas palavras com autoridade. O salmo vê isso em imagens múltiplas. Cedros antigos e árvores altas foram atingidos por raios e quebrados. Quem pode olhar para isso sem se deixar dominar pela seriedade do Juízo Final? As montanhas estremecem, sacudidas por um terremoto — A tempestade passou em sete fortes trovões, três sobre o mar, quatro sobre a terra. Isso faz lembrar os sete trovões do Apocalipse de João: “Os sete trovões emitiram as suas vozes” (Apocalipse João 10,3).

Glória ao Senhor — ele está entronizado sobre o dilúvio. Sim, ele, o Senhor, será entronizado, um rei para sempre. O Senhor — ele dará força ao seu povo. O Senhor — ele abençoará seu povo com paz.

O salmo termina onde começou: no santuário celestial. Lá em cima se ouve a “Gloria in excelsis” das hostes celestiais. No Apocalipse de João, é particularmente impressionante como, em meio às visões de destruição, a imagem do trono celestial aparece repetidamente como um mastro de repouso, o que nos dá a certeza de uma última direção significativa dos eventos. A última palavra deste salmo de tempestade é “paz”. O arco-íris, sinal divino da salvação da aliança, segue a tempestade. Quem passou pela tempestade e se deu conta de sua imortalidade sente a passagem pela zona de destruição como um aumento de força interior. “O Senhor dará força ao seu povo.” Depois desta palavra de força vem a palavra de paz!

“Gloria in excelsis” é respondido pelo “et in terra pax”. Através do tempo, o homem sabe que está conectado com aquele que está entronizado em majestade eterna. Há paz divina no trono celestial, há paz e esperança poderosa abaixo nos corações dos seres humanos. Em meio às tempestades e crises pelas quais passamos, nos conscientizamos das manifestações de Deus na Terra e nos voltamos interiormente ao que realmente importa, despertando do sono e nos voltando para a realização de nossa missão, a construção da paz.

Carlos Maranhão

Reflexão sobre o salmo 148

“Aleluia! Louvai o Senhor nos céus, louvai-o nas alturas.
Louvai-o, vós todos, seus anjos, louvai-o, vós todos, seus exércitos.
Louvai-o, sol e lua, louvai-o, vós todas, estrelas brilhantes.
Louvai-o, céus dos céus, e vós, águas de cima dos céus.
Louvem o nome do Senhor, porque ele mandou e foram criados.
Firmou-os para sempre, eternamente, deu-lhes uma lei que jamais passará.
Louvai o Senhor na terra, cetáceos e todos os abismos,
raio e granizo, neve e neblina, vento tempestuoso que cumpre suas ordens;
montes e todas as colinas, árvores frutíferas e todos os cedros,
feras e animais domésticos, répteis e aves que voam.
Os reis da terra e todos os povos, governantes e chefes todos da terra,
rapazes e moças, os velhos junto com as crianças,
louvem o nome do Senhor porque só seu nome é sublime. Sua majestade resplandece sobre o céu e a terra.
Ele aumentou o poder do seu povo. É canto de louvor para todos os seus fiéis, para os filhos de Israel, povo que está perto dele. Aleluia.”

Salmo 148

Louvai o Senhor!

Hoje em dia nos ocupamos muito mais com outras coisas do que com o louvor e a gratidão. Normalmente olhamos para os nossos feitos e para as dificuldades da vida. Tornou-se incomum agradecer e louvar. O salmo nos mostra como o louvor e a gratidão podem ressoar por toda a criação. Primeiro nos reinos dos céus e em suas forças. Depois no reino da Terra e em tudo que vive em sua face. De toda a criação, o ser humano tem uma tarefa especial. Ele está apto a desenvolver sua liberdade. Adquirindo a possibilidade de se relacionar em liberdade com o mundo espiritual. Desta maneira, está em nossas mãos agradecer e louvar.

Louvai o Senhor!

Podemos fazer pequenos passos para intensificar a gratidão em nós. No final do dia podemos silenciar por um instante e perguntar: Por qual momento do dia sinto gratidão? Perceberemos que temos muito a agradecer: aos nossos familiares, amigos e pessoas que encontramos. À Terra que nos sustenta e aos céus de onde trouxemos nossa missão de vida, e para onde voltaremos. Essa gratidão pode se tornar um grande louvor ao Senhor. O ser humano caminhará para uma harmonia com o louvor de todas as hierarquias.

Louvai o Senhor!

Julian Rögge

Reflexão sobre o salmo 121

“Levanto os meus olhos para os montes.
De onde me vem ajuda?
Minha ajuda vem do Senhor que fez o céu e a terra.
Não deixará vacilar o teu pé,
Não irá cochilar, o teu guardião.
Eis que não cochilará nem dormirá o guardião da humanidade.
O Senhor é o teu guardião.
O Senhor é tua sombra sobre tua mão direita.
O sol não te molestará de dia nem a lua de noite.
O Senhor te protegerá de todo o mal; protegerá a tua alma.
O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora, até a eternidade.”

Salmo 121

Normalmente, perante os desafios do nosso dia a dia, sentimos a necessidade de receber ajuda e tentamos elevar a nossa alma para Deus, na esperança de receber Dele essa ajuda. Assim poderíamos dizer que temos inicialmente a pergunta “De onde me vem ajuda?” e num segundo passo “Elevamos os olhos para os montes”. O impulso de querer se unir com o mundo divino espiritual, somente para receber ajuda, nos leva ao risco de criarmos um relacionamento egoísta com Deus, de sempre querermos receber algo para nós. Esse relacionamento se torna muito difícil quando se chega a um nível mercantil, em que condicionamos a nossa atuação religiosa ao recebimento de uma ajuda. O Salmo 121 nos orienta a seguir um outro caminho. Ele não é uma oração para pedir ajuda. Ele é um caminho que podemos fazer quando queremos elevar a nossa alma ao divino.
Partimos do impulso de “elevar os olhos para os montes”, de elevar a nossa consciência, a nossa alma, ao mundo espiritual. O primeiro passo é o esforço de elevar a consciência, em oração ou meditação. Com os olhos, representantes de um órgão de sentido espiritual, procuramos nos elevar aos montes, representantes do mundo espiritual.
Quando entramos no âmbito de uma consciência espiritual, percebemos que precisamos de ajuda, muito mais do que necessitamos em nosso dia a dia. Pois tudo aquilo que nos oferece segurança aqui na Terra, os nossos pertences, não têm nenhum significado nas esferas espirituais. Quanto mais elevamos nossa alma em direção ao Divino, tanto mais perde sentido aquilo que temos, e apenas aquilo que somos tem um significado. Sacrificar o que temos, para procurar o que somos, nos coloca num estado de completa insegurança e necessitamos de ajuda: “De onde me vem ajuda?”
A conquista da nossa liberdade nos coloca na tarefa de que, apesar da disposição do Divino de nos ajudar, somos nós que temos de dar o primeiro passo: reconhecer o Senhor, que fez céu e terra, como aquele que pode nos ajudar e com o qual queremos em liberdade nos unir. Não se trata necessariamente de pedir ajuda para resolver algum problema do nosso dia a dia. Se trata muito mais de reconhecer que necessitamos de ajuda para podermos prosseguir um caminho espiritual e desenvolver a nossa consciência.
Vemos, assim, nas três primeiras frases do Salmo 121, os três passos do início de um caminho espiritual:

  • O esforço de elevar os olhos para os montes
  • A consciência de que precisamos de ajuda neste caminho
  • O reconhecimento de que essa ajuda pode vir à nós do Senhor, do Cristo

O que pode nos dar a segurança de que estamos dando passos na direção correta em nosso caminho espiritual é uma transformação da nossa autoconsciência. Enquanto, num primeiro passo do desenvolvimento do eu, nos vivenciamos a nós mesmos no centro, e o mundo na periferia, somos eu centrados, o que pode nos levar a sermos “ego cêntricos”, num segundo passo podemos aprender a sentir que a realidade do nosso ser superior não está no centro, no corpo, mas na periferia, no mundo. Sem perder a qualidade da autoconsciência, podemos vivenciar que esse ser superior começa a falar da periferia para nós. Não é o nosso eu cotidiano que fala de si para os outros, é alguém que fala para nós e, mesmo assim, não é um outro, mas nós mesmos.
“Não deixará vacilar o teu pé, não irá cochilar, o teu guardião.” No caminho que nós mesmos temos de trilhar, a ajuda que precisamos está em ter a segurança de onde colocar o pé, e não perder a consciência conquistada aqui na Terra, a consciência desperta do nosso eu.
A nossa consciência é restrita, e estamos a caminho de desenvolvê-la. Por isso necessitamos da ajuda de um ser, que tenha a consciência necessária para nos ajudar a seguir um caminho espiritual e nos proteger de ir além do que podemos suportar. Precisamos da ajuda do Guardião do Limiar. Davi vivenciou a realidade desse guardião relacionado com o seu povo, Israel. Hoje podemos vivenciar que o Guardião está relacionado com toda a humanidade, independente de pertencermos a um povo. O guardião é o Senhor, é o Cristo.
Num próximo passo de um caminho espiritual podemos fazer a experiência de que a ajuda que recebemos não é, necessariamente, para resolver os nossos problemas, mas uma força que nos possibilita atuar no mundo de uma forma melhor do que seria possível apenas a partir das nossas próprias faculdades. Quem desperta para esse nível de relacionamento com o mundo espiritual conhece a situação de receber um elogio por algo que fez e saber que isso só foi possível porque algo superior atuou através de nós:  “O Senhor é tua sombra sobre tua mão direita.”
Assim, muitas coisas que nos provocavam desgosto, não nos molestam mais. Não é mais tão importante nos perguntar, se nos sentimos bem. É muito mais importante nos perguntar se podemos fazer algo para o mundo: “O sol não te molestará de dia nem a lua de noite.”
Precisamos da ajuda dos seres espirituais. Mas precisamos também de ajuda para nos protegermos de seres espirituais. Pois não existem somente os seres que querem nos ajudar no desenvolvimento do nosso eu, mas também aqueles que nos são adversos. Temos de aprender a distinguir os espíritos, distinguir o bem e o mal, para que nossa alma não corra perigo: O Senhor te protegerá de todo o mal; protegerá a tua alma.
Um caminho espiritual sadio é caracterizado pelo domínio da decisão individual sobre quando queremos elevar a nossa consciência ao mundo espiritual, “aos montes”, e quando queremos dirigir a nossa consciência para as tarefas do nosso dia a dia; quando queremos estar presentes no agora, e quando queremos estar na eternidade. Enquanto não dominamos essa transição, a ajuda do Guardião do Limiar consiste em nos impedir de entrar no mundo espiritual. E, no momento em que estivermos aptos, ele será aquele que nos conduzirá nesse caminho. “O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora, até a eternidade.”

João F. Torunsky

Reflexão sobre o salmo 19

“Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos.
Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite.
Não há linguagem nem fala onde não se ouça a sua voz. A sua linha se estende por toda a terra, e as suas palavras até ao fim do mundo. Neles pôs uma tenda para o sol, o qual é como um noivo que sai do seu tálamo, e se alegra como um herói, a correr o seu caminho. A sua saída é desde uma extremidade dos céus, e o seu curso até à outra extremidade, e nada se esconde ao seu calor. A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma; o testemunho do Senhor é fiel, e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro, e ilumina os olhos. O temor do Senhor é limpo, e permanece eternamente; os juízos do Senhor são verdadeiros e justos juntamente. Mais desejáveis são do que o ouro, sim, do que muito ouro fino; e mais doces do que o mel e o licor dos favos. Também por eles é admoestado o teu servo; e em os guardar há grande recompensa. Quem pode entender os seus erros? Expurga-me tu dos que me são ocultos. Também da soberba guarda o teu servo, para que se não assenhoreie de mim. Então serei sincero, e ficarei limpo de grande transgressão. Sejam agradáveis as palavras da minha boca e a meditação do meu coração perante a tua face, Senhor, Rocha minha e Redentor meu!

Salmo 19

No salmo 19, podemos acompanhar o processo de evolução do ser humano desde as esferas celestes no reino do Deus Pai, passando pela chegada na Terra com o Deus Filho e alcançando o aperfeiçoamento do ser humano num futuro indeterminado por meio do Deus Espírito. Aí temos o passado, o presente e o futuro.
Dos “céus” se faz ressoar a declaração da glória de Deus, como que a partir da música das esferas, e o firmamento anuncia sua obra. Os antigos que falavam da música das esferas expressavam uma realidade espiritual. Os céus não apenas iluminam, mas a partir de seus seres falam. A palavra hebraica para “declarar” aqui tem a mesma raiz da palavra “sepher” que quer dizer livro. Os céus estrelado é o livro primordial, o livro dos livros. Nele a humanidade antiga recebia a escritura sagrada revelada.
A menção ao firmamento fala do poder da vontade de Deus. Para o cientista moderno não é correto falar de um firmamento, pois as estrelas estão em constante movimento. Mas a antiga palavra “firmamento” nos transmite um mundo divino baseado numa eterna e profunda paz e silêncio. Nele há algo que transcende nossa vivência puramente física. Assim vivenciavam os antigos, no supraterreno, um mundo de permanência, segurança e silenciosa harmonia. A partir daí o salmo descende no caminho da encarnação, no tornar-se carne, no mundo do tempo: “Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite”. Aqui trata-se de um processo de conhecimento que é anunciado no dia, mas só se realiza através da noite, no sono.
Finalmente o salmo chega à Terra, em sua existência espacial e material, mas a uma Terra que é ordenada e formada pelos céus: a linha de medida se estende por toda a Terra. O sol nos ofusca a visão dos céus e nos remete a olhar o campo terreno do trabalho, o mundo de nosso vir a ser humano. Para o ser humano no tempo em que a consciência do eu ainda não havia se fortificado, o sol era o ser que trazia a organização do dia. Em Cristo surge a divindade como o grande Eu Sou que traz ao ser humano a força diurna da consciência. O sol é apresentado pelo salmista de duas formas: como herói e como noivo. O herói é o ser humano excepcional que mostra aos outros o que significa na verdade ser humano: seguir um caminho. Isso demonstra o fato de o ser humano estar em constante desenvolvimento, em constante vir a ser. As antigas escolas de mistério também retratavam o discípulo consagrado como “Heliodromos”, o caminhador solar, aquele que segue com confiança constante o seu caminho celeste. Podemos ver, por exemplo, o percurso do Cristo com a força e determinação até completar sua missão. Mas Cristo não é apenas o modelo do herói que cumpre sua missão, ele é também o modelo do que é verdadeiramente ser humano, é o arquétipo do ser humano: ele é o noivo. O elevado Deus Filho chama-se noivo, pois a ele é prometida a alma humana com quem, em íntima comunhão, se unirá no casamento sagrado. A imagem do salmo para isso é: “Neles pôs uma tenda para o sol”. A palavra grega para tenda tem a mesma raiz que a palavra “morar” utilizada por João Evangelista em seu prólogo ao dizer: “O verbo se fez carne e morou entre nós”.
O salmo segue adiante como um hino dedicado à lei, torna-se abstrato. Podemos dizer que no céu estrelado vivenciamos o Deus Pai, no Sol, o Deus Filho, a vivência do livro sagrado representa então a esfera ainda futura do Espírito Santo, e por ser sua realização ainda coisa do futuro, daí sua tendência à abstração. Embora não tenhamos uma imagem muito positiva dos doutores da lei do Antigo Testamento, podemos vislumbrar nesse aspecto de leis, o bem atemporal. Isso no cristianismo dos novos tempos pode se tornar vivo ao interpretarmos essas doze sentenças como uma ordenação dos atos humanos baseada no harmonioso zodíaco celeste. Isso é seguido pelas metáforas do ouro e do mel. No ouro a humanidade sempre viu o símbolo da sabedoria. O mel sempre foi o alimento dos mistérios. Assim um dos pastores aos quais se anunciou o nascimento de Jesus dizia ter sonhado que sua alma recebia muita doçura, muito mel e muitas rosas.
No final o salmo volta-se para a interioridade humana com o desejo de que a palavra celeste possa também lhe pertencer, de que possamos não só ouvi-la, mas realizá-la. O ser humano chega ao si mesmo, onde não apenas “ouve” dos seres divinos a direção a seguir, mas começa a “falar” com os seres divinos. Aí ele se transforma e aprende a limpar-se da “grande transgressão”. Por meio do Espírito Santo, ele almeja alcançar a paz na rocha que é o Deus Pai nele e na redenção que é o Cristo nele.

Carlos Maranhão

Reflexão sobre o salmo 104

“Minha alma, bendize o Senhor! Senhor, meu Deus, como és grande!
Revestido de majestade e de esplendor, envolto em luz como num manto.
Tu estendes o céu como uma tenda, constróis sobre as águas tuas moradas,
fazes das nuvens teu carro, andas sobre as asas do vento;
fazes dos ventos teus mensageiros, das chamas de fogo teus ministros.
Firmaste a terra sobre suas bases, para ficar imóvel pelos séculos eternos.
Com o oceano a envolveste como num manto, as águas cobriam as montanhas.
À tua ameaça fugiram, ao fragor do teu trovão tremeram.
Sobem os montes, descem os vales ao lugar que lhes determinaste.
Para as águas marcaste um limite intransponível, para não tornarem a cobrir a terra.
Fazes brotar as fontes nos vales e escorrem entre os montes;
dão de beber a todas as feras do campo e os asnos selvagens matam sua sede.
A seus lados moram as aves do céu, cantam entre as ramagens.
De tuas altas moradas irrigas os montes, com o fruto das tuas obras sacias a terra.
Fazes crescer o feno para o gado, e a erva útil ao homem,
para que tire da terra o seu pão: o vinho que alegra o coração do homem, o óleo que realça o brilho do rosto e o pão que sustenta o seu vigor.
Saciam-se as árvores do Senhor, os cedros do Líbano que ele plantou.
Lá os pássaros fazem ninhos e a cegonha no seu topo tem sua casa.
Para as cabras são as altas montanhas, as rochas são refúgio para os roedores.
Fizeste a lua para marcar os tempos e o sol que sabe a hora de se pôr.
Estendes as trevas e chega a noite e vagueiam todas as feras da floresta;
rugem os leõezinhos em busca de presa e pedem a Deus seu alimento.
Quando fazes o sol nascer, se retiram e se escondem nas suas tocas.
Então sai o homem para o trabalho, para sua fadiga até a tarde.
Como são numerosas, Senhor, tuas obras! Tudo fizeste com sabedoria, a terra está cheia das tuas criaturas.
Eis o mar, espaçoso e vasto: nele há répteis sem número, animais pequenos e grandes.
Percorrem-no os navios, e o Leviatã que formaste para com ele brincar.
Todos de ti esperam que a seu tempo lhes dês o alimento.
Tu lhes forneces e eles o recolhem, abres a tua mão e saciam-se de bens.
Se escondes teu rosto, desfalecem, se a respiração lhes tiras, morrem e voltam ao pó.
Mandas teu espírito, são criados, e assim renovas a face da terra.
A glória do Senhor seja para sempre, alegre-se o Senhor com suas obras.
Ele olha a terra e fá-la saltar, toca os montes e fumegam.
Quero cantar ao Senhor enquanto eu viver, cantar a meu Deus enquanto eu existir.
Seja-lhe grato meu poema; a minha alegria está no Senhor.
Desapareçam da terra os pecadores e não existam mais os ímpios.
Bendize o Senhor, minha alma!”

Salmo 104

Nesse salmo podemos acompanhar a gênesis, a criação dos céus e da Terra. O ser humano é mencionado duas vezes. É ele quem trabalha do levantar do sol até o começo da noite. Ele recebeu as plantas para o cultivo. Deve ganhar assim, sua vida pelo trabalho na Terra. Como produtos do trabalho do ser humano são mencionados o pão, o vinho e o óleo. Eles também são usados, como substâncias, nos sacramentos da Comunidade de Cristãos. O pão e o suco de uva (vinho) no Ato de Consagração do Homem. O óleo na Extrema Unção e na Consagração Sacerdotal. Com quais qualidades eles estão ligados?
O pão vem do trigo. O trigo cresce e une as forças da Terra e dos céus. Pelas raízes ele recebe os minerais e a água da terra e os transforma em sementes. Para isso, o trigo necessita a força solar. Ele sempre cresce em direção ao sol e, no final deste processo, precisa secar no calor. A semente do trigo está mais ligada ao elemento terra, ao seco. Após a colheita, várias ações são necessárias para transformar o grão de trigo em pão. O pão é um produto do trabalho humano na Terra.
As uvas também precisam do sol, mas, muito mais de seu calor. Elas amadurecem, protegidas do sol direto, pelas folhas da videira. Na uva é principalmente a água que se transforma através do calor. As uvas estão mais ligadas ao elemento água, ao líquido. O vinho é relacionado, no salmo, com o coração. Podemos sentir aí, uma relação com o nosso sangue.
As oliveiras precisam muito sol e calor. Essa força do sol ficará visível no óleo, na cor e na possibilidade de conferir brilho. Ele também tem a qualidade de fazer permeável. Por exemplo, ao passarmos óleo em uma folha de papel, observamos como ela se torna translúcida. Isso quer dizer: permeável à luz.
O que significam as qualidades do pão, do vinho e do óleo para os seres humanos? Uma das metas principais do ser humano é unir os céus à Terra. Com o trabalho das nossas mãos podemos tornar essa união frutífera para o mundo, podemos cultivar a Terra. Esse processo é representado pelo pão. O calor humano, a compaixão e o entusiasmo estão mais ligados ao nosso coração, eles podem pulsar em nosso sangue. Podem trazer vitalidade e impulsos para a nossa vida na Terra. Essas forças podemos ver no vinho. Pão e vinho podem se tornar no Ato de Consagração do Homem os portadores do corpo e do sangue de Cristo. Nos tornarmos permeáveis ao mundo espiritual, pode ser a maior tarefa nos dias de hoje. O óleo é o arquétipo dessa qualidade e por isso usado em dois sacramentos que estão no limiar entre a Terra e os céus.

Julian Rögge

Reflexão sobre o salmo 8

Ó Senhor, nosso soberano,
quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!
Tu, que expandiu a revelação do teu ser pelos céus.
Da boca das crianças e dos que mamam
Tu suscitaste a força contra teus adversários, para calar o inimigo indigno.
Quando contemplo os teus céus,
obra de teus dedos,
a lua e as estrelas que estabeleceste,
que é o homem, para que te lembres dele?
e o filho do homem, para que o acolhas?
Deixaste pouco faltar nele da dignidade divina, o coroaste de honra e revelação espiritual.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo puseste debaixo de seus pés, todas as ovelhas e bois, assim como os animais do campo, as aves do céu, e os peixes do mar, tudo o que passa pelas veredas dos mares.
Ó Senhor, nosso soberano,
quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!

Salmo 8

O que é o homem?

Esta é a grande pergunta da nossa existência: quem somos nós?

Quando, numa noite estrelada, olhamos para o céu acima de nós e vemos a majestade do universo, o reluzir das estrelas, a pálida luz da lua…, podemos ser repletos de um sentimento: admiração!
Quando, de dia, olhamos para a natureza ao nosso derredor e vemos a beleza do mundo, uma pedra, uma planta, uma flor, um passarinho…, podemos ser repletos de um sentimento: admiração!

“quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!
Tu, que expandiu a revelação do teu ser pelos céus.”

E o que é o homem? Quem somos nós?

A palavra homem vem do latim, e tem a ver com húmus. O homem é aquele que vem da terra. Mas, em grego, a palavra para homem é “antropos”, o que significa “o que olha para cima”. Os animais têm a sua cabeça voltada para a terra, já o homem superou a gravidade, se colocou em pé, ereto, e desenvolveu a possibilidade de olhar para cima.

O que é o homem?

Temos a nossa origem nos céus e, a partir dessa origem divina espiritual, podemos superar os obstáculos da vida, nos desenvolvermos como seres humanos. A criança recém-nascida ainda traz em si algo que nos deixa pressentir essa origem celestial do nosso ser.

“Da boca das crianças e dos que mamam
Tu suscitaste a força contra teus adversários, para calar o inimigo indigno.”

Mas, quando nos encarnamos, nós nos ligamos com a terra. Isso é necessário para nos desenvolvermos, mas traz o perigo de que realmente percamos a ligação com a nossa origem, com a “criança”, com os céus. Precisamos sentir em nós, existencialmente, a pergunta “o que é o homem? quem somos nós?”, e desenvolver a força de erguer a nossa cabeça, não somente num sentido exterior, mas interiormente, e olhar para os céus, para uma realidade divino espiritual.

“Quando contemplo os teus céus,
obra de teus dedos,
a lua e as estrelas que estabeleceste,
que é o homem, para que te lembres dele?”

Podemos ver o caminho do nosso desenvolvimento em três passos: éramos “crianças”, unidos com o divino, num estado paradisíaco. Nos encarnamos, nos ligamos com a terra e nos tornamos homens. Agora a meta não é voltar a sermos “crianças” negando a encarnação como “homens”, ou nos tornarmos completamente “homens terrestres”, esquecendo a nossa origem. A meta é, em liberdade, nos ligarmos com as forças da “criança” em nós, para que, como homens, possamos estar “grávidos de nós mesmos”, do nosso ser superior, e nos tornarmos “filhos do homem”.

“que é o homem, para que te lembres dele?
e o filho do homem, para que o acolhas?”

A grande diferença entre a natureza e o ser humano, está no fato de que a natureza é uma criação divina, a qual podemos admirar. Também nós fazemos parte da natureza e, assim, o esplendor da criação divina também está em nós. Mas, além disso, temos em nós uma potência criativa, que nos eleva da natureza: não somos somente criaturas, somos também criadores.

“Deixaste pouco faltar nele da dignidade divina, o coroaste de honra e revelação espiritual.”

Para o nosso desenvolvimento, esse dom divino espiritual de sermos criadores foi colocado na esfera da nossa liberdade.

“Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos”

Desenvolvemos a nossa cultura dominando sempre mais a natureza, criando a ciência, a arte e a técnica. Mas ter o domínio da natureza exige ter a responsabilidade por ela. A falta de responsabilidade no domínio da natureza nos trouxe os grandes problemas ecológicos do presente. Liberdade sem responsabilidade não nos leva a desenvolver o humano, mas, muito pelo contrário, nos torna desumanos. Nos encarnamos na terra, nos tornamos homens, e ganhamos a liberdade. O nosso desenvolvimento em liberdade pode nos levar em duas direções: usamos a nossa liberdade e poder criativo para desenvolver a qualidade humana em nós e nos tornarmos realmente seres humanos, “filhos do homem”, membros da hierarquia dos anjos; ou usamos a nossa liberdade e poder criativo para satisfazer os nossos desejos egoístas, perdendo a qualidade humana, nos tornando “animais” – na realidade, pior que os animais. A maior tarefa que recebemos quando ganhamos o domínio da natureza, é desenvolver o domínio do animal em nós.

“tudo puseste debaixo de seus pés,
todas as ovelhas e bois,
assim como os animais do campo,
as aves do céu, e os peixes do mar,
tudo o que passa pelas veredas dos mares.”
Começamos o nosso caminho no paraíso, diante da presença divina, como “crianças” podendo dizer:
“Ó Senhor, nosso soberano,
quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!”

Nos encarnamos na terra, nos tornamos “homens” e vivemos com o grande enigma existencial: “que é o homem, para que te lembres dele?”

Temos, como meta, descobrir o poder criativo em nós, a força do nosso eu, a força do “Filho do Homem”, a força do Cristo, para podermos sermos co-criadores do ser humano e, em liberdade, aprender a superar a natureza animal egoísta em nós, aprender a amar.

Então, como “filhos do homem”, poderemos estar presentes novamente diante do Divino, e dizer:

“Ó Senhor, nosso soberano,
quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!”

João F. Torunsky