Palestra: A comunhão espiritual: acolher Cristo em nosso pensar

Daremos aqui o terceiro passo sobre o tema da comunhão. Na primeira palestra olhamos para a comunhão com o pão e o vinho, que tem um caráter mais individual e, de um ponto de vista espiritual mais profundo, tem a ver com o impulso que recebemos para a formação do nosso carma e, assim, para o desenvolvimento do nosso eu. Na segunda palestra vimos o motivo da paz, que tem um caráter social, na comunhão com o outro. Vimos que necessitamos de uma ajuda, de uma força para formar o nosso carma, que tem a ver com a comunhão com o pão e o vinho, mas a substância que temos para formar o carma surge dos nossos relacionamentos, dos nossos relacionamentos sociais, uns com os outros. A partir da formação de um carma e do desenvolvimento do nosso eu, temos como meta formar relacionamentos com a qualidade da paz. Hoje, no terceiro passo, nos aproximaremos do tema da comunhão espiritual, e veremos que ela tem a ver com o nosso relacionamento com a Terra, com a natureza.

No âmbito vegetal da natureza vivenciamos processos de germinação, de crescimento, de florescimento, de formar frutos e sementes, e também os processos de fenecimento, de murchar, secar e apodrecer. É o lado do desenvolvimento das plantas na natureza. Esses processos acontecem no ritmo das estações do ano: primavera, verão, outono e inverno. Quanto mais próximos estamos da linha do Equador, menos podemos diferenciar essas quatro estações, e quanto mais próximos das zonas temperadas, mais nítidas elas são. Mas mesmo se vivemos numa região em que as estações estão como que misturadas, podemos aprender a observar as distintas qualidades. O germinar, o florescer, o formar frutos possuem uma qualidade relacionada à primavera e ao verão. Já o amadurecer, formar sementes e então perecer, mostram uma qualidade relacionada ao outono e ao inverno. A natureza se desenvolve no ritmo entre primavera verão e outono-inverno, entre o desenvolvimento e o perecimento da vida vegetativa. As sementes e os brotos formados nesses processos asseguram a continuidade da vida. Assim, no próximo ano, o ritmo da natureza pode se renovar. Mas é importante perceber que a natureza, nesse ritmo das estações do ano, em realidade não se desenvolve como algo novo, mas ocorre sempre como a repetição do mesmo. Ela é maravilhosa, mas não tem, em si, um desenvolvimento no mesmo sentido de que podemos falar do nosso desenvolvimento. As transformações que ocorrem na natureza, acontecem em períodos muito longos, de séculos e milênios. O principal aspecto que podemos observar é que, no passado, surgiu um impulso que levou à formação do que hoje temos como natureza. Existe como que uma inércia na continuação desse impulso, que mantém aquilo que temos hoje na natureza. Mas esse impulso de criação tem, em si, a tendência de se extinguir. A natureza não caminha na direção de formar um novo impulso para o futuro, mas tem a tendência de acabar, de morrer. Um dia não haverá mais a natureza, não haverá mais a Terra. Temos a grande responsabilidade de preservar essa natureza o máximo possível, esperamos que por muitos milênios. Mas a tendência natural é seguir um caminho para um fim, para uma morte. Esse pensamento que a natureza é temporal, que teve um início e terá um fim, encontramos tanto no âmbito da ciência natural, quanto da religião ou de uma ciência espiritual. A física, a partir do conceito da entropia, trata até do fim dos processos naturais como “o cemitério cósmico”. A energia que proporcionou o início da criação do universo tem a tendência de se equilibrar, e então nada mais acontecerá. Também encontramos, no Novo Testamento, as palavras de Jesus Cristo: céu e terra passarão. Embora seja a mesma ideia da temporalidade da nossa realidade, encontramos aqui uma esperança para um futuro, para a criação de algo novo, pois Ele prossegue, dizendo: minhas palavras nunca passarão. Essa ideia da criação de uma nova realidade futura se concretiza no Apocalipse com a descrição da “Nova Jerusalém”. E na Antroposofia, como uma ciência espiritual, encontramos os mesmos conceitos da temporalidade da nossa Terra, e da possibilidade da formação de uma nova realidade futura, descrita então como o Novo Júpiter, que seria o correlato para o que, no Novo Testamento, está descrito como a Nova Jerusalém. A consciência comum é aquela que está em relação com a temporalidade da Terra. Mesmo que observemos a maravilha da renovação da vida no ritmo das estações do ano, temos de nos conscientizarmos que, apesar da maravilha da natureza, esta não tem, em si, um impulso que possa criar um novo futuro, pois ela só consegue repetir o passado. Assim surge a pergunta de onde pode provir o impulso que possibilite a formação de um futuro para a natureza, a formação da Nova Jerusalém, do Novo Júpiter? Esse é o ponto onde temos de olhar para o ser humano, olhar para nós.

Nós temos um relacionamento com a natureza, e dela fazemos parte. Como seres que pertencem à natureza, estamos exatamente no mesmo caminho da natureza. Temos um impulso de criação que nos leva a formar o nosso corpo e a nascer. Esse impulso vem do tempo pré-natal, ou, melhor dizendo, da preconcepção. Ele possibilita viver, aqui na Terra, toda a nossa biografia, mas tem a tendência de se desgastar e ir para a morte. Seguramente iremos todos morrer um dia, assim como a Terra um dia terá um fim. Fazemos parte da natureza, mas somente no âmbito do nosso corpo e da nossa vitalidade. Mas o ser humano é um ser dotado de uma dupla qualidade. Não temos somente o lado natural do nosso ser, o corpo e a vitalidade. Temos também a nossa alma e o nosso eu, que não têm a sua origem na natureza. O nosso corpo faz parte da natureza, mas não a nossa alma.

Se observamos a nossa vida podemos ver que também nós nos desenvolvemos dentro de um ritmo e que, nesse ritmo, podemos encontrar as qualidades das estações do ano. Mas, na natureza, as qualidades das estações se revelam no ritmo de um ano, enquanto temos, em nós, essas qualidades no ritmo do dia. Olhando para um lado do nosso ser, para o nosso corpo, podemos ver que, durante a noite, enquanto dormimos, vivenciamos um processo de vitalização, e encontramos aqui a qualidade primavera verão. Já, durante o dia, quando estamos despertos, vivenciamos um processo de desvitalização, e encontramos a qualidade outono-inverno. Para o corpo, o sono é como o ciclo primavera verão, e nos vitaliza; a vigília, como o outono-inverno, nos desvitaliza. Vivenciamos esses processos também com a nossa alma, mas de uma maneira oposta à vivência do corpo. Durante o dia, quando estamos despertos, formamos a nossa vida anímica com os pensamentos, os sentimentos e os impulsos que germinam e crescem em nossa alma. Durante a noite, quando estamos dormindo, perdemos a consciência da nossa alma e a vida anímica perece em nós. Para a nossa alma, o sono é como outono-inverno, em que se perde a vida anímica; a vigília é como primavera verão, com o desenvolvimento da vida anímica. O ritmo do corpo e o ritmo da alma são, assim, opostos. Durante o dia, temos no corpo, outono-inverno, e na alma, primavera verão; durante a noite, primavera verão no corpo, e outono-inverno na alma.

Na natureza, quando é primavera verão, vemos tudo germinar, brotar, crescer, florir, formar frutos, porque nela atua a força de criação que vem do passado, renova a vida e eleva o mineral a um nível vegetal. Quando vem outono-inverno a natureza perde a ligação com esse impulso do passado e entra no processo de murchar, secar, perecer, e o nível vegetal tende para um nível mineral. Quando nós, seres humanos, estamos despertos, nosso corpo perde a ligação com as forças pré-natais que o formaram, e se desvitaliza. E exatamente essa desvitalização do corpo é o que possibilita a formação de uma vida anímica consciente. Quando nós dormimos e perdemos a consciência, o corpo pode unir-se novamente com essas forças pré-natais, revitalizando-se. O que impede a ligação do corpo com as forças pré-natais é a nossa consciência de vigília. Quando a perdemos no sono, o corpo pode ter novamente essa ligação. Assim, temos no corpo os mesmos processos que ocorrem na natureza: uma revitalização pela ligação com as forças criativas do passado, e uma desvitalização quando se perde essa ligação.

E como ocorre com a alma? Despertamos pela manhã para um novo dia. Recuperamos a nossa autoconsciência e criamos a nossa vida anímica, desenvolvendo o nosso eu. A base para a criação dessa vida anímica consciente é a desvitalização do corpo. À noite, deixamos o corpo, para que ele se ligue com as forças pré-natais e, assim, possa se revitalizar. A nossa alma segue agora inconscientemente, no sono, um caminho no mundo espiritual e se liga com a imagem arquetípica do ser humano, com a meta do nosso desenvolvimento, com aquilo que poderemos ser no futuro. Esse futuro, com o qual nos ligamos durante o sono, tem a ver tanto com o futuro da humanidade e do cosmo, quanto com o nosso futuro individual. Quando, no próximo dia, despertamos novamente, encontramos um corpo revitalizado pelas forças pré-natais, pelas forças do passado, e temos a nossa alma revitalizada com impulsos para o futuro. Isso é o que diferencia o ser humano de todos os outros seres da natureza: a possibilidade de trazer, do sono, impulsos que vem do futuro, de viver não apenas repetindo o passado, mas de criar realmente um futuro. Não podemos dizer, como o fazemos para nós, que a natureza dorme. Pois o essencial que acontece durante o nosso sono, é a possibilidade da alma receber um impulso para o futuro. Isso não acontece na natureza.

Enquanto estamos encarnados e despertos em nosso corpo, podemos ver a influência de duas correntes. Pelo corpo temos a influência daquilo que vem do passado. Isso nos dá a base para formar a nossa vida anímica consciente. Mas, durante o sono, na alma inconsciente, temos a influência daquilo que vem do futuro, com que nos ligamos. A influência do passado tem a tendência de determinar o nosso presente, o que se chama de causalidade. Mas também a influência do futuro tem a tendência de determinar o nosso presente, o que poderíamos chamar de finalidade. Tanto a realidade terrestre, a natureza, no princípio da causalidade, quanto o mundo espiritual, as metas e os ideais, no princípio da finalidade, tem a tendência de nos determinar e, assim, não nos deixam livres. Em nossa alma, no presente, temos o encontro dessas duas tendências, da causalidade que vem do passado e da finalidade que vem do futuro e, nessa polaridade, podemos criar a nossa liberdade, no equilíbrio entre causalidade e finalidade, entre passado e futuro, entre natureza e espírito.

E o ser humano é aquele que pode, em liberdade, no reino da natureza, no âmbito determinado pelo passado, pela causalidade, trazer os impulsos do mundo espiritual, do âmbito que tem, em si, as metas e a força para criar o futuro. E, do mesmo modo, oferecer à natureza, à Terra, a possibilidade de criar um futuro. Para isso precisamos desenvolver uma consciência de vigília capaz de se despertar para os impulsos futuros que, inconscientemente, recebemos no sono. Na medida em que os impulsos futuros se tornam uma realidade em nossa consciência, que tem como base o nosso corpo, que por sua vez, faz parte da natureza, impregnamos a natureza com esses impulsos.

O que acontece com a natureza, com as substâncias terrestres, quando estas passam a constituir o nosso corpo? As substâncias da Terra são minerais, que se formam e se comportam de acordo com as forças físicas. No reino mineral temos realmente a atuação das forças terrestres e da causalidade. No momento em que as substâncias minerais são assimiladas pelo nosso corpo vivo, elas perdem algo da sua mineralidade, passam a ser regidas por nossas forças etéricas e formam a base para a nossa vida biológica. No momento em que nós despertamos para uma vida anímica consciente, formamos essa consciência a partir da desvitalização do nosso corpo. A substância tem de perder algo da sua vitalidade para servir de base para a nossa vida anímica consciente. Temos agora a tarefa de, durante a nossa vida anímica, durante a nossa biografia, desenvolvermos o nosso eu. O que é necessário para formar uma vida na esfera do eu? Temos de aprender a sacrificar a nossa astralidade, para formar realmente uma espiritualidade. Partimos de substâncias minerais. Elas perdem a sua mineralidade para formar a vida biológica. Perdem a sua vitalidade para formar uma vida anímica. E tem que perder a sua astralidade, para formar uma vida espiritual.

Assim, vemos uma diferença entre uma vida anímica e uma vida espiritual. A vida anímica consiste nos sentimentos pessoais que formamos como simpatia e antipatia, e em pensamentos que, num primeiro nível, são meras associações e que, com a conquista da racionalidade, tornam-se abstrações intelectuais. A qualidade dessa vida anímica é que temos sentimentos pessoais e, dentre eles, o sentimento de que nós produzimos os nossos próprios pensamentos. Esses pensamentos não são, em si, realidades espirituais, mas imagens refletidas de uma realidade, assim, destituídas de vida. É o que se chama de pensamentos mortos. Uma vida espiritual começa quando o eu desenvolve a possibilidade de estar presente nos sentimentos e, num caminho de autoconhecimento e autoeducação, transforma a simpatia e a antipatia em uma empatia, ou seja, a possibilidade de sentir o que o outro está sentindo. O sentimento se liberta da subjetividade e passa a ser um órgão de percepção para o sentimento do outro. E quando o eu pode estar realmente presente no pensar, ele pode sacrificar o sentimento de ser o criador dos seus pensamentos e almejar receber as ideias do mundo espiritual e oferecer a sua consciência como um âmbito no qual as ideias possam viver aqui na Terra: na consciência do ser humano. A transformação dos sentimentos em empatia e colocar a consciência a serviço do mundo espiritual, esse é o sacrifício da subjetividade pelo eu, a perda da astralidade, aquilo que transforma a vida anímica numa vida espiritual. A alma torna-se então como um altar onde, pela força do nosso eu, sacrificamos a nós mesmos, para que algo superior a nós, possa viver em nós.

O caminho da natureza, da substância dentro de nós, dentro do nosso corpo, começa com as substâncias minerais que ingerimos. Elas perdem a mineralidade, para criar a base da vida biológica. Eles perdem a vitalidade para formar a base da vida anímica. Elas perdem a astralidade, para formar a base de uma vida espiritual. Nessa esfera, a substância é espiritualizada, humanizada, recebe do ser humano um impulso futuro que ela não teria por si mesma. Em nós acontece a transubstanciação da matéria. O caminho que seguimos como seres humanos começa no nascimento, ao nos encarnarmos em nosso corpo. No ritmo de dia e noite, formamos a nossa autoconsciência na vigília, e renovamos o nosso impulso espiritual durante o sono. Esse processo tem como meta, durante a vigília, desenvolvermos uma consciência que pode despertar para esses impulsos espirituais que vivem inconscientes em nós, com os quais nos ligamos durante o sono. Isso não atinge a sua realidade em sentimentos subjetivos de ligação com o mundo espiritual. Isso apenas se torna uma realidade quando conseguimos oferecer a nossa alma para que a ideia espiritual possa viver no palco da nossa consciência, aqui na Terra. Isso é possível quando superamos a subjetividade no sentir e, no pensar, a abstração e o intelectualismo, tornando assim o pensar, em algo vivo. Essa possibilidade do ser humano de unir, em seu ser, a realidade da natureza com a realidade das ideias, é o que podemos chamar de comunhão espiritual. Pela comunhão espiritual, a natureza recebe um impulso para o futuro, recebe uma semente espiritual, que a levará à formação de seu futuro.

Podemos tentar concretizar, um pouco, como é possível exercitar essa comunhão espiritual. Não necessitamos fazer algo totalmente diferente do que praticamos agora, mas podemos fazer com uma outra consciência. Por exemplo, em uma oração. Podemos orar, por exemplo, o Pai Nosso, com a intenção totalmente válida de, a partir dessas palavras, sentirmo-nos mais unidos com o Divino e, assim, recebermos uma força para superar os desafios da vida. Podemos vivenciar, subjetivamente, sentimentos religiosos profundos. Mas podemos, também, orar o Pai Nosso com uma outra intenção, ao não nos perguntar qual a importância que essa oração pode ter para nós. Podemos nos conscientizar de que o Pai Nosso é, com certeza, uma realidade no mundo espiritual, que nunca estaria presente na Terra, se não fosse orado por um ser humano. É necessário que a consciência e a intenção de um ser humano, para que as palavras do Pai Nosso soem no ar da Terra, se impregnem na sua atmosfera. Quanto mais nos sentimos como palco, ou numa expressão mais profunda, como altar, e falamos ou pensamos as palavras do Pai Nosso com a intenção de unir a Terra com essas palavras, tanto mais proporcionamos a comunhão espiritual da Terra com o espírito, por meio de nós. Essa também pode ser a intenção de uma meditação, quando não a fazemos como caminho para o nosso desenvolvimento, mas como contribuição para a Terra, oferecendo a alma para que a presença da ideia espiritual possa se realizar na Terra. Um terceiro âmbito no qual podemos exercitar a comunhão espiritual, de uma forma muito profunda, é o sacramento, o Ato de Consagração do Homem. Pois no culto vivenciamos, de forma perceptível, “objetiva”, realidades espirituais. Com certeza é válido vivenciar o culto de uma forma subjetiva, com a atenção nos sentimentos religiosos que se formam, e com a esperança de receber uma ajuda para a própria vida. Mas também é possível, e talvez até seja o caminho que temos de exercitar mais, o de vivenciar o culto de uma forma objetiva, sacrificando a própria subjetividade e astralidade, se oferecendo para que aquilo que é realizado como uma imagem pelo sacerdote, possa viver no palco da nossa consciência, no altar da nossa alma, como uma realidade espiritual e, assim, por meio de nós, pela ligação da nossa consciência com o nosso corpo, contribuir para a comunhão espiritual, para o futuro da Terra.

As próprias palavras do Ato de Consagração do Homem querem nos despertar para o caminho da comunhão espiritual, quando escutamos as palavras do Cristo nos dizendo que devemos acolher isso em nosso pensar. Quando conseguirmos desenvolver um pensar vivo, que se ofereça para que o Cristo pense em nós, teremos chegado a uma meta do desenvolvimento da nossa autoconsciência. E o que, aparentemente, é a comunhão com substâncias, com o pão e o vinho, se revela nas palavras do culto, como aquilo que tem como meta se espiritualizar em nós, e transformar aquilo que é uma realidade temporal aqui na Terra, em um futuro atemporal da nossa existência.

João F. Torunsky