Referente à perícope dos Atos dos Apóstolos 2, 1-12
Talvez nenhum outro momento do calendário cristão una de maneira tão profunda o passado com o futuro, a tradição com a liberdade, quanto esse dia de Pentecostes.
Nos primeiros 2000 anos da era cristã, Pentecostes foi compreendido e vivido como o mistério da descida do Espírito Santo sobre a comunidade dos discípulos. Essa comunidade estava reunida, num gesto de recolhimento e espera e, então, foi tocada por uma realidade espiritual que a transformou.
Como lemos nos Atos dos Apóstolos, “línguas como de fogo pousaram sobre cada um deles”, e falaram em muitas línguas. Mas o milagre não foi o dom das línguas, e sim a compreensão universal que se deu entre seres humanos de diferentes nações, culturas e temperamentos. Essa compreensão interior foi o primeiro gesto de um amor cósmico derramado sobre a Terra, não como sentimento vago, mas como força real. Foi o impulso da consciência moral nascendo na alma humana.
Nos dois milênios seguintes, esse Espírito foi como um fermento silencioso, gestando a dignidade do ser humano, desenvolvendo pouco a pouco o sentido da individualidade, da consciência de si e da responsabilidade moral.
Rudolf Steiner descreveu esse processo como o despertar do Eu, do verdadeiro Eu espiritual, que não é dado de fora, mas precisa ser conquistado livremente por cada alma.
Pentecostes, nesse sentido, não é um evento isolado: é um processo contínuo na história da humanidade, um Pentecostes permanente que atua como impulso moral e espiritual por detrás dos acontecimentos históricos e também dos nossos encontros humanos cotidianos.
Mas agora estamos numa encruzilhada. Vivemos tempos em que a força comunitária antiga não atende mais aos anseios humanos. Tempos em que o que chamávamos de “Igreja”, “povo”, “nação” ou “tradição” já não é mais suficiente para sustentar o sentido da vida. O Espírito já não age mais por fora, como autoridade, dogma ou norma imposta. Ele quer agir agora de dentro para fora, a partir da liberdade individual conquistada. E essa é a pergunta decisiva do nosso tempo: Como formar comunidades verdadeiras, não por convenções ou crenças herdadas, mas por livre reconhecimento espiritual entre indivíduos?
O futuro de Pentecostes são comunidades formadas por indivíduos livres, que se reúnem não por laços de sangue ou de cultura, mas por intuições comuns do bem, por ressonância moral, por ideais viventes. Essas comunidades – sejam grupos de estudo, iniciativas pedagógicas, religiosas, artísticas ou sociais – são como pequenas “igrejas pentecostais do futuro”, não no sentido institucional, mas no sentido do encontro vivo entre Eu e Eu, entre Eu e o Espírito, numa linguagem comum que não se aprende com gramáticas, mas com o coração desperto.
Nesse novo Pentecostes, cada pessoa se torna uma “língua de fogo” que, em vez de convencer, inspira; que, em vez de unificar de fora, faz nascer unidade viva de dentro. O Espírito não mais desce sobre uma massa indistinta, mas desce em cada alma como possibilidade de individualização verdadeira e, a partir disso, de comunidade consciente.
Portanto ao celebrarmos hoje Pentecostes, não olhemos apenas para trás, para o milagre de Jerusalém. Olhemos também para aquilo que pode nascer entre nós hoje.
Carlos Maranhão