Palestra: A comunhão social: A paz seja conosco

Na última palestra falamos da comunhão substancial, a comunhão com o pão e o vinho. O motivo espiritual mais profundo da comunhão com o pão e o vinho tem o sentido de uma ajuda para a formação do carma. Para o desenvolvimento do eu é necessária essa formação do carma. Pois só assim o eu pode desenvolver, tanto a liberdade quanto a responsabilidade.

Indo um passo à frente podemos nos perguntar o que forma o carma. O carma é consequência de tudo que fazemos ou deixamos de fazer. O carma tem a ver com a nossa força de vontade, com a possibilidade de atuar no mundo, ou com a decisão de não atuar. É importante sentir que, tanto na ação, quanto na omissão, temos responsabilidade. Naquilo que fazemos, ou deixamos de fazer, estamos em relacionamento com os outros, com a Terra. O carma é a consequência dos nossos relacionamentos. A comunhão com o pão e o vinho nos ajuda na formação do carma. Mas se vamos um passo à frente somos levados a nos perguntar, como são os nossos relacionamentos com os outros e o nosso relacionamento com a Terra. A questão dos nossos relacionamentos com os outros será o tema da palestra de hoje, a comunhão social. A formação do carma tem a ver com nossa vida social, com o nosso relacionamento com as outras pessoas. A questão do nosso relacionamento com a Terra será o tema da próxima palestra, a comunhão espiritual.

No Novo Testamento encontramos a anunciação dos anjos aos pastores sobre o nascimento do Jesus. As palavras dos anjos são muito conhecidas e as temos também escritas na imagem do altar de Natal: Revela-se Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade. Podemos ver essa anunciação dos Anjos em relação ao nosso tema. O carma se forma no caminho da alma, entre a morte e um novo nascimento. Ele se forma pela digestão das nossas experiências, da nossa biografia, de acordo com a sabedoria divina. É uma revelação do Divino nas alturas. A consequência frutífera da formação do carma seria o desenvolvimento do eu, para que a paz possa se revelar na sua vontade.

No Ato de Consagração do Homem não recebemos somente a comunhão com o pão e o vinho, com as substâncias. Existe um terceiro elemento, a comunhão com a paz. Depois que recebemos o pão e o vinho, o sacerdote toca a nossa face e diz as palavras: A paz seja contigo. É a comunhão com a paz.

A formulação “A paz seja contigo” provoca, às vezes, um desagrado para pessoas que têm um sentimento aguçado para o idioma português. Sente-se que seria melhor formular: A paz esteja contigo. Aqui vemos esta possibilidade maravilhosa do nosso idioma de distinguir entre ‘ser’ e ‘estar’. Essa diferença se torna bem nítida quando temos a possibilidade de usar as duas formulações com intenções bem determinadas. É uma grande diferença se dizemos “estamos doentes” ou “somos doentes”. O estar tem a ver com um estado em nossa vida, que pode ser temporário. O ser tem a ver com uma qualidade do nosso próprio ser, que faz parte de nós. Assim, a formulação “A paz seja contigo” indica a direção de que essa paz não deve ser um estado temporário, mas uma qualidade do nosso ser. Os tradutores do Novo Testamento também sentiram essa diferença e optaram por formular a saudação do Cristo Ressurreto também assim: Paz seja convosco.

O desenvolvimento do eu exige a separação. Na última palestra vimos esse motivo da ‘separação’ como a separação do paraíso. A Bíblia relata ainda algo sobre a consequência social da separação, que também é necessária para o desenvolvimento do eu. No Antigo Testamento temos o relato da construção da Torre de Babel. O povo daquela época decidiu construir uma torre, a Torre de Babel, para atingir o céu. É uma narração imaginativa que expressa, por um lado, o desenvolvimento da técnica, de poder construir uma torre, e por outro lado o anseio de, a partir de uma técnica, atingir o mundo espiritual. Até o início da construção da torre, todos falavam o mesmo idioma, significando que havia uma compreensão de um para com o outro. Para impedir que continuassem construindo a torre, Deus diferenciou os idiomas. A partir de então, houve a formação de grupos, e cada grupo passou a falar o seu próprio idioma. A consequência foi que não se compreendiam, uns aos outros, e perderam a possibilidade de atuar conjuntamente. É o início da separação social, do caminho que nos leva a não nos compreendermos uns aos outros. Esse processo de separação social é necessário para o desenvolvimento do eu, e já estamos tão avançados nesse caminho que hoje, apesar de falarmos o mesmo idioma, temos muita dificuldade de nos compreendermos. Essa separação social também é necessária para o desenvolvimento do eu, mas como já dissemos na última palestra, a separação necessita de um contrapeso que nos possibilite formar um equilíbrio: a separação necessita da polaridade da comunhão. Vimos que a separação do mundo espiritual é necessária para que possamos nos encarnar e despertar para nossa consciência de vigília, para nossa autoconsciência. A polaridade para a consciência de vigília é o sono. Na vigília estamos desenvolvendo o nosso eu, mas separados do mundo espiritual. No sono estamos unidos com mundo espiritual, mas sem autoconsciência. Encontramos essa polaridade entre vigília e sono, de uma forma muito mais sutil, também nos relacionamentos sociais. Rudolf Steiner descreve essa polaridade como o fenômeno social arquetípico. Quando num encontro com o outro, procuramos nos unir a ele, temos a tendência de adormecer. Mas, inconscientemente, não queremos adormecer, não queremos perder a nossa autoconsciência. Assim, surge o impulso de nos mantermos despertos, e nos separamos do outro. O fenômeno social arquetípico está no oscilar, entre estarmos acordados em nós mesmos e dormindo no outro. Esse oscilar é muito sutil e inconsciente. Mas com um pouco de atenção podemos observá-lo em nossa alma. Enquanto escutamos o outro temos a tendência de formar os nossos próprios pensamentos e sentimentos. Mas, desse modo, a nossa alma fica preenchida de nós mesmos, do que nós pensamos e sentimos e, apesar de estarmos escutando o outro, estamos separados dele. Para realmente nos unirmos com o outro, temos de apenas escutá-lo, parar de formar os nossos próprios pensamentos e sentimentos. Mas, assim, perderíamos a nós mesmos. Oscilamos entre escutar o outro e formar os nossos próprios pensamentos e sentimentos, ou seja, dormimos no outro e acordamos em nós mesmos. Essa polaridade que podemos ver no encontro pessoal com o outro, vemos também na polaridade entre indivíduo e comunidade. Quanto mais olhamos exclusivamente para o desenvolvimento do nosso próprio eu, tanto mais nos tornamos antissociais e nos separamos da comunidade com os outros. Quanto mais queremos fazer parte de uma comunidade, cumprindo as nossas obrigações sociais, tanto mais corremos o risco de perdermos a nós mesmos. Para o desenvolvimento sadio do nosso eu, necessitamos também encontrar um equilíbrio entre a nossa individualidade e a vida em sociedade. Aqui também podemos ver a necessidade do desenvolvimento da sociedade. Rudolf Steiner descreve esse processo como a lei sociológica principal. Ela descreve que, no início da história da humanidade, se formaram comunidades onde o indivíduo tinha como tarefa servir ao desenvolvimento da comunidade. Sempre mais se tornará necessário que se formem comunidades onde a comunidade tenha como tarefa, servir ao desenvolvimento do indivíduo.

Estamos sempre diante do fato de que existe uma evolução, tanto do mundo, quanto em nós mesmos. Mas o que pode nos parecer ser óbvio, a ideia que existe uma evolução, nem sempre foi evidente na história da humanidade. Na realidade, a convicção ampla de que existe uma evolução é bem recente na história da humanidade, e surgiu há aproximadamente 200 anos. Foi Darwin o primeiro a formular pensamentos que conseguem explicar os processos de evolução de uma forma racional. A sua genialidade consiste em explicar a evolução, a partir de dois fenômenos básicos: a mutação por acaso e a luta pela sobrevivência. Essa compreensão da evolução, segundo Darwin, se tornou popular e determinou essencialmente o desenvolvimento das ciências naturais, mas também a própria formação da nossa sociedade. No decorrer do século XX formou-se também um darwinismo social, que considera a luta pela sobrevivência como uma necessidade para o desenvolvimento da sociedade. Essa é a concepção que está por detrás de uma sociedade capitalista. Mas, já desde o início da formação da teoria de desenvolvimento de Darwin, houve cientistas que se opuseram a ela. O principal deles foi Kropotkin que, como cientista também, observou a natureza e chegou à conclusão de que o que possibilita a evolução é o impulso do auxílio mútuo. Isso se torna muito nítido na observação dos insetos, a espécie com maior sucesso na evolução. Dentro de uma colmeia de abelhas ou de um ninho de formigas, não se observa nenhuma luta pela sobrevivência, mas, muito pelo contrário, o princípio de ajuda mútua. Essa ideia de ajuda mútua como impulso para a evolução, também teve a sua influência nos processos sociais e, pelo menos de uma forma idealista, está por detrás de uma sociedade comunista. Então, quem tem razão, Darwin ou Kropotkin? O desenvolvimento ocorre por luta pela sobrevivência ou por ajuda mútua?

Em 1905 Rudolf Steiner proferiu uma palestra sobre a paz social onde tematiza esta pergunta: quem tem razão, Darwin ou Kropotkin? A sua resposta pode nos ajudar a ir um passo à frente em nossas considerações: os dois têm razão. Mas o que podemos observar na natureza é que o impulso da ajuda mútua atua dentro de uma colmeia, dentro de um ninho, dentro de um grupo, enquanto o impulso da luta pela sobrevivência atua entre os diferentes grupos. Isso podemos observar muito facilmente, por exemplo, com formigas saúvas. Dentro de um ninho as formigas ajudam-se mutuamente. Mas quando formigas de dois grupos distintos se encontram, ocorre uma luta feroz, até a morte. Também podemos observar isso em relação às abelhas. Para entender por que isso ocorre na natureza, precisamos de um ponto de vista espiritual. Os animais não estão encarnados, cada qual com o seu eu, como nós seres humanos. Eles estão encarnados até o nível do corpo astral, mas possuem um eu comum, de grupo, que não está encarnado, que se conhece por alma de grupo. A partir do impulso dessa alma de grupo, surge o impulso da ajuda mútua dentro do grupo. Mas entre os diferentes grupos, encontramos o impulso da luta pela sobrevivência que, na realidade, é uma luta entre as almas de grupos.

Se olharmos para o desenvolvimento da humanidade, podemos encontrar também esses dois princípios. No início do desenvolvimento, nós ainda não tínhamos o nosso eu encarnado como hoje. A autoconsciência das pessoas estava muito mais ligada ao fato de pertencerem a um grupo: uma raça, um povo, uma nação, uma família. Esses grupos sociais também possuem uma alma de grupo. Na história da humanidade vemos os mesmos princípios que ocorrem na natureza: dentro de um grupo havia o mesmo ideal para impulsos sociais, de se ajudarem mutuamente. E essa ajuda mútua era determinada por leis, por autoridades. Mas sempre houve guerras entre os grupos, entre os povos. Surge então o fenômeno de que, para o desenvolvimento do eu, o indivíduo tem de se emancipar dos seus laços com o grupo consanguíneo. Hoje em dia, não é mais sadio se definir a si mesmo a partir de um relacionamento com uma raça, com um povo, com uma nação, com a família, ou mesmo com uma determinada classe social. Onde essas relações são colocadas como meta para uma sociedade, temos de reconhecer que há um impulso contrário ao desenvolvimento da individualidade. Nós desenvolvemos o nosso eu estando sempre mais encarnados em nós mesmos, nos emancipando do relacionamento com a alma de grupo. Mas surge, então, o problema social: ao nos emanciparmos da alma de grupo, perdemos o impulso da ajuda mútua, e desenvolvemos sempre mais o impulso da luta pela sobrevivência. Isso acontece em um nível muito mais profundo da nossa alma do que podemos ter consciência. Muitas vezes temos, na consciência, os ideais sociais, mas os instintos que nos levam a atuar trazem uma qualidade antissocial. Este é um processo natural do desenvolvimento da individualidade: quanto mais nos tornamos individualidades livres, tanto mais atua na sociedade o princípio da luta pela sobrevivência, e os ideais de ajuda mútua, que vivem de uma forma teórica em nossa consciência, não tem a força de formação social. Esse fenômeno social já se tornou muito claro no início do século XX, mas foi acelerado intensamente a partir da Segunda Guerra Mundial. Hoje podemos ver as duas tendências: o desenvolvimento natural da separação social e os impulsos políticos retroativos de querer formar uma sociedade a partir da consanguinidade e do nacionalismo. Temos um passado onde o indivíduo estava como que dormindo no grupo e havia uma determinada paz social, mas sem uma liberdade individual. Hoje acordamos em nós mesmos, estamos desenvolvendo a nossa liberdade individual, mas com o risco de perdermos totalmente a paz social.

Qual é o caminho que nos leva para um futuro social, uma comunhão social entre individualidades livres? Necessitamos da união com uma alma de grupo que não tenha as qualidades do passado, que não mais se define pela consanguinidade ou pela nação. O eu é o que de mais humano temos em nós, ele não pertence a uma raça, a uma família, a uma nação, a um gênero. O eu pertence à humanidade, e qualquer indivíduo pode se definir como um eu, pelo fato de pertencer à humanidade. Como individualidades livres necessitamos do relacionamento com uma alma de grupo que seja o espírito de toda humanidade. Esta é a qualidade do Cristo: Ele é o espírito da humanidade, o Representante da Humanidade. Não é possível criar diretamente a paz social, a comunhão espiritual, somente a partir de nós mesmos, apesar de termos as melhores intenções e os maiores ideais. Precisamos da ligação com um espírito de grupo comum. Para toda a humanidade, esse espírito é o Cristo. Pelas comunidades às quais pertencemos, precisamos procurar um relacionamento com um anjo que queira servir com Cristo nesse sentido, que não seja um anjo com impulsos retroativos ligados ao passado. Não é suficiente querer se ligar com um anjo, é necessário decidir com qual anjo queremos nos ligar.

Para alcançar a união com o Cristo existem dois caminhos. Um deles é o caminho individual, que podemos encontrar na frase formulada pelo apóstolo Paulo: não eu, mas Cristo em mim. O outro é o caminho social que encontramos nas palavras do Jesus Cristo: onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, estarei entre vós. Na realidade não é possível seguir um ou outro caminho: temos de seguir nos dois ao mesmo tempo, pois eles se complementam. Não é possível ter realmente um relacionamento com Cristo sem querer ter um relacionamento com o próximo. Não é possível ter um relacionamento como individualidade livre com o próximo, sem ter se encontrado a si mesmo, o seu próprio eu, o Cristo em nós. Mas quando começamos a perceber a realidade do eu em nós mesmos, começamos a nos emancipar da consanguinidade, do gênero, do nacionalismo, e podemos também, começar a perceber que essa realidade do eu existe também no outro. O caminho para o relacionamento individual com o Cristo nos leva a perceber: não eu, mas Cristo em mim. O caminho para a comunhão social nos leva a perceber: não eu, mas Cristo em ti. Nesses dois “não eu” se revela uma individualidade livre, que a partir da força do eu aprendeu a dizer não eu.

Para isso necessitamos desenvolver o interesse pelo outro, querer reconhecer como a qualidade do humano se encarna também no outro, apesar de ele ser completamente diferente de mim. Para podermos ter o interesse pelo outro, precisamos de uma paz interior, não estarmos ocupados com as nossas próprias preocupações. Mas não é possível criar a paz interior a partir de nós mesmos. Ela é um presente, uma graça, quando conseguimos dizer não eu, e desenvolvemos o interesse pelo outro. A paz depende do interesse pelo outro, ou, mais profundamente dizendo, depende do amor, um pelo outro. Precisamos desenvolver ativamente o interesse pelo outro e, então, receberemos paz em nós. E quanto mais paz tivermos, mais interesse pelo outro poderemos desenvolver e, assim, seguirmos o caminho da comunhão social.

Na última parte do Ato de Consagração do Homem, temos três orações antes da comunhão. Na primeira oração vemos descrito a fonte da comunhão social: “Estou em plena paz com o mundo, esta paz com o mundo pode estar também convosco, porque eu vo-la dou”.

João F. Torunsky