Conto: Tia Filomena 3

O sonho de Catarina – Parte 3 – Quinta-feira Santa

Para Catarina aquele dia transcorreu lentamente. A menina, impaciente, contava os minutos para que chegasse a hora da história.

No final do dia, tia Filomena sentou-se com seus sobrinhos-netos nos banquinhos da cozinha e contou-lhes como Jesus havia decidido, naquela noite, celebrar a tradicional ceia judaica de Pessah com seus discípulos. Aquela ceia seria a última refeição que Ele faria com seus discípulos e amigos antes de sua morte. A pequena Catarina ficou muito triste ao escutar que Jesus iria morrer, pois ainda que já soubesse disto, todos os anos quando tia Filomena lhes contava esta parte a menina ficava profundamente tocada por este momento. Tia Filomena a consolou:

– Catarina, querida, é compreensível que quando alguém que amamos morre, fiquemos tristes, tudo isto faz parte da nossa vida. Mas pense como deve ter sido especial este momento em que Jesus festejou a Última Ceia com seus discípulos. Eles carregaram a lembrança deste momento por toda vida e sempre que o rememoravam se enchiam de alegria!

As crianças foram dormir. Catarina, deitada em sua cama, relembrava as explicações de tia Filomena, mas ainda assim não conseguia entender como era possível que os discípulos ficassem alegres naquela noite, quando já sabiam que Jesus iria morrer em breve…

Era o final da tarde, Linos se encaminhava até a fonte com um cântaro para buscar água. Catarina o acompanhava, carregando também um jarro menor. Havia pouca gente nas ruas de Jerusalém aquelas horas; todos estavam em suas casas ocupados em providenciar os preparativos para a ceia de Pessah, a Páscoa dos judeus. Linos e Catarina encheram seus recipientes na fonte. Quando regressavam à casa, notaram que dois homens os seguiam. Linos parou. Catarina se sentiu um pouco assustada com a aproximação dos desconhecidos. Linos puxou-a para perto de si com o braço e fez um gesto para que não se preocupasse. Catarina entendia todos os gestos de Linos, pois era sua forma de se comunicar, já que era mudo. Quando os dois desconhecidos estavam a poucos passos, um deles se dirigiu a Linos e falou:

– Diga a seu amo, que nosso mestre deseja celebrar hoje a noite a ceia de Pessah em sua casa.

Linos assentiu com a cabeça. Catarina teve a impressão de que aqueles homens não eram desconhecidos para seu amigo, que lhe explicou que eram dois discípulos de Jesus. Neste instante a menina se sentiu mais tranquila.

Ao chegaram em casa, Linos indicou por gestos que Catarina levasse algumas almofadas e as colocasse ao redor da baixa mesa que se encontrava numa sala no andar de cima da casa; lá deveria acontecer a ceia.

De volta a cozinha, Catarina encontrou Linos ocupado em espremer uvas, para obter seu suco, ou o vinho não fermentado, como costumavam chamar. Sempre utilizando a linguagem dos gestos, pediu que Catarina abrisse uma caixa de madeira que se encontrava sobre a mesa. Dentro, a menina encontrou um raro objeto: uma grande pedra preciosa lapidada na forma de cálice, que pertencia ao dono da casa, o senhor José de Arimatéia. Fora ele quem orientara Linos a colocar o cálice à disposição de Jesus naquela noite. Seguindo as orientações do servente, Catarina poliu cuidadosamente o cálice de pedra com um tecido de linho; depois subiu ao andar de cima e colocou-o no centro sobre a mesa baixa.

Linos também havia preparado alguns pães sem fermento e um molho feito com ervas aromáticas e amargas. Todos estes alimentos faziam parte da tradicional ceia de Pessah, segundo o rito judaico.

Linos, ajudado por Catarina, preparou ainda uma grande bacia e uma ânfora cheia de água fresca, pois era costume oferecer água para os hospedes lavarem as mãos antes de comerem.

Anoiteceu, tudo estava preparado. Linos e Catarina se acomodaram num diminuto quartinho que ficava ao lado da sala no andar de cima. Eles permaneceriam ali, vigilantes, para servir os hospedes ou para providenciar qualquer coisa de que necessitassem.

Quando bateram à porta, foi o proprietário, José de Arimatéia, quem abriu, recebeu os convidados e conduziu Jesus e seus discípulos à sala no andar superior. O anfitrião reiterou as boas-vindas e disse que se retiraria, mas informou que se os hóspedes necessitassem algo, dois de seus serventes, encontravam-se no pequeno cômodo ao lado, prontos para atendê-los.

Jesus agradeceu a hospitalidade e, junto com seus discípulos, se acomodou nas almofadas ao redor da mesa baixa.

Catarina e Linos podiam observar tudo pela abertura da porta. Ouviram os cânticos e salmos que entoaram para iniciar a refeição. Jesus estava sentado no lugar de destaque, ladeado por seus amigos. Tomou um dos pães sem fermento, pronunciou uma benção de agradecimento a Deus e o partiu, entregando um pedaço a cada um dos discípulos, disse:

– Tomai, este é o meu corpo.

Depois tomou a jarra com o vinho não fermentado, preparado pouco tempo antes por Linos, e encheu o cálice de pedra. Tornou a pronunciar a benção e entregou o cálice aos discípulos, dizendo:

– Tomai, este é o meu sangue.

Os discípulos tomavam o cálice, bebiam um gole e o passam de mão em mão, até que todos haviam bebido.

Catarina observava tudo em silêncio; aos poucos foi notando que uma atmosfera serena e solene havia preenchido a sala. Notou ainda que os rostos dos discípulos se tornavam luminosos, tal era a alegria que irradiavam. Percebeu que seu amigo Linos também parecia preenchido daquela alegria silenciosa. A menina sentiu um profundo contentamento ao lembrar que, poucas horas antes, havia polido aquele magnífico objeto de pedra, do qual Jesus e seus discípulos havim bebido.

Jesus se ergueu de seu lugar e se dirigiu até próximo da abertura do cômodo onde se encontravam os dois serventes. Inclinou-se para pegar a bacia. Linos num instante se ergueu para realizar aquela tarefa, mas Jesus fez-lhe um sinal de que não era necessário, pois Ele mesmo queria fazer aquilo. Jesus levou a bacia e a ânfora com água até a mesa baixa. Verteu água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, que, como não esperavam aquele gesto, ficaram atônitos. Catarina também não compreendia o que estava ocorrendo… pensava consigo mesma:

– Por que Jesus faz isto? Ele é o mestre! Linos e eu somos os serventes, nós é que deveríamos fazer esta tarefa…

Por causa de seu temperamento impulsivo, Catarina estava a ponto de se levantar para ir ajudar Jesus na tarefa de lavar os pés dos discípulos. Linos, percebendo a impaciência da menina, estendeu o braço e tomou carinhosamente a sua mão, fez um gesto para que se acalmasse e que tudo estava bem, da forma como estava acontecendo…

Ao terminar, Jesus retornou ao seu lugar e disse:

– Vós me chamais de mestre e isto está correto. Mas o mestre está para servir e não para ser servido. O que hoje fiz convosco, fazei-o uns aos outros e ensinai-o a todos que escutarem minhas palavras.

Linos, que ainda segurava a mão de Catarina, apertou-a com mais força neste instante. Ambos estavam comovidos com aquelas palavras.

O grupo dos discípulos cantou ainda alguns salmos e cânticos de agradecimento. A ceia chegava ao final. Jesus disse que deviam se retirar e passar o resto da noite no Jardim das Oliveiras. Um dos discípulos, chamado Judas, já havia se retirando mais cedo.

José de Arimatéia conduziu os hóspedes até a porta da casa. Linos e Catarina começaram a recolhes os utensílios da mesa e os alimentos que haviam sobrado. O dono da casa subiu mais uma vez à sala do andar de cima e recolheu o cálice de pedra, envolvendo-o numa toalha de linho e guardando-o de volta na caixa de madeira. Quando haviam limpado e arrumado tudo, José se aproximou de Catarina e disse:

– Criança, Linos me informou que tu lhe ajudaste a preparar todos os detalhes desta ceia. Jesus e seus amigos ficaram muito contentes de poder celebrar a ceia de Pessah aqui em minha casa e eu agradeço a ambos pela dedicação com que cuidaram de tudo!

-Senhor José, disse Catarina, foi muito bonito o que aconteceu esta noite na sala no andar de cima.

Linos, que se encontrava ao lado de Catarina, colocou a mão sobre o peito, num sinal de que também estava emocionado com o que tinha assistido.

José foi até um nicho na parede e trouxe uma caixinha de prata. Abriu e retirou de lá um cacho repleto de uvas-passas, entregou-o a Catarina e disse:

– Em Arimatéia, região onde nasci, cresce um tipo de uvas claras e doces. Lá costuma-se secar as uvas no próprio cacho. Comerciantes de lugares distantes, pagam bom preço por estas uvas, pois seu sabor e doçura são inigualáveis, parece que não existem uvas assim em outro lugar. Quero te presentear com este cacho, para que saibas que estou muito agradecido pela tua ajuda.

Catarina recebeu o cacho e admirava as delicadas uvas-passas de cor âmbar-dourado. Sentia seu delicado e doce perfume. Quanto mais olhara para elas, tanto mais tinha a impressão de que as uvinhas douradas brilhavam cada mais com maior intensidade. O brilho foi ficando tão intenso que Catarina teve que fechar os olhos…

Quando os abriu de novo, notou que a luz do sol entrava pela janela aberta do quarto. Vera acabara de abri-la:

– Bom dia prima! A luz do sol lhe acordou? Desculpe-me por abrir a janela, não queria que se assustasse!

Catarina olhou para a prima com um sorriso nos lábios e disse:

– Você não me assustou! Eu estava tendo um sonho lindo!

Abriu as mãos e mostrou para a prima:

-Olha, eu ganhei do senhor José de Arimetéia este lindo cacho de uvas-passas douradas! Sonhei que estava na casa dele na noite em que Jesus e os discípulos fizeram a Última Ceia, como tia Filomena nos contou ontem!

As meninas foram mostrar o cacho de uvas-passas a tia Filomena. Durante a refeição da manhã, Catarina contou seu sonho e sua alegria era transbordante. No final a anciã disse:

– Catarina, minha pequenina, creio que agora você começou a entender o que eu quis dizer, quando lhe falei sobre aquela profunda alegria vivida pelos discípulos. Mesmo que tenhamos que passar por situações difíceis e que nos deixam tristes, sempre é possível encontrar ou relembrar momentos felizes!

Tia Filomena guardou o cacho de uvas-passas douradas junto com as outras uvas-passas que Vera e Rômulo já lhe tinham entregado. Faltavam dois dias para a Páscoa. Quando chegasse a hora de fazer a massa para a trança de pão-doce que sempre preparava para a festa, iria recheá-la com essas frutinhas tão especiais que seus sobrinhos-netos haviam recebido de presente em seus sonhos!

Renato Gomes