Conto: Sensei Xu

Feng-Hay era uma aldeia encravada nas altas montanhas da grande Cordilheira. Por causa das características do lugar, as famílias construíam suas casas nas encostas das paredes rochosas e, para facilitar a comunicação, construíam pontes de cordas e tábuas para unir uma habitação à outra. A praça central de Feng-Hay era o lugar plano mais amplo que havia. Ali acontecia semanalmente o mercado de alimentos e utensílios. Neste local ocorriam também as reuniões populares para conversar e decidir os assuntos importantes da aldeia. Naquela época, cada família produzia quase tudo que necessitava para sobreviver: nos degraus naturais das encostas rochosas cultivavam seus alimentos, confeccionavam suas roupas com a fibra de lã de iaque, grandes animais parecidos a bisões que viviam nos planaltos mais elevados, produziam e consertavam suas próprias ferramentas de trabalho. Não havia escolas em Feng-Hay. As crianças aprendiam quase tudo que necessitavam aprender para sua vida futura com seus pais e avós. Havia, entretanto, uma coisa que as crianças não aprendiam em suas casas: o Wushu – uma antiga arte marcial que combinava movimento, concentração, controle de cada músculo do corpo e, principalmente, muita disciplina. Não era tarefa fácil, ensinar às crianças e aos jovens esta antiga arte. Para alegria de todos que moravam naquele lugar, viva em Feng-Hay um grande mestre desta arte, chamado Sensei Xu. Em verdade, “sensei” significa mestre, mas todos, há muitas décadas, sempre se referiam ao velho professor com este título. Sensei Xu era com certeza a pessoa mais velha do lugar. Morava numa pequena cabana na encosta de um grande paredão de rocha escura do outro lado do estreito vale que ficava em frente à praça de Feng-Hay. A única maneira de chegar à casa do mestre, era cruzar o vale pela ponte de corda e tábuas que se estendia sobre a fenda do abismo que separava as montanhas de Feng-Hay da enorme rocha escura onde Sensei Xu habitava. No fundo da fenda, corria o caudaloso rio Hou, de águas geladas, que nascia nas geleiras dos picos da cordilheira.
Todos os dias pela manhã, os alunos – crianças e os jovens até seus quatorze anos – cruzavam a ponte sobre o rio Hou para ir até a casa de Sensei Xu receber seus ensinamentos. Eles se reuniam em silêncio, sentados no chão da estreita plataforma de pedra onde ficava a cabana do mestre, esperando que Piong-He tocasse um grande sino. Piong-He era o jovem aprendiz que auxiliava o mestre Xu. O velho Sensei havia ficado cego pelos anos e necessitava ajuda para algumas tarefas, além disso Piong-He almejava um dia tornar-se um sensei na arte do Wushu. Por este motivo servia ao velho mestre e aprendia muito com ele.
Piong-He, todas as manhãs, depois de tocar o sino, conduzia Sensei Xu até uma rocha no centro da plataforma de pedra e o ajuda a subir nela. Sensei Xu, apesar da idade, era ainda forte e ágil e muitas vezes dava a impressão de que enxergava normalmente, tão atento e habilidoso ele caminhava e se movia pelo terreno irregular da montanha.
No momento em que Sensei Xu batia com seu bastão no chão, todos os alunos se erguiam simultaneamente. O sensei segurava então seu alto e firma bastão de tuia com as duas mãos, bem à frente de seu corpo. Parecia que o próprio Sensei se unia ao bastão e juntos formavam um sólido tronco de tuia, espécie de pinheiro que cresce nas montanhas. Permanecia nesta posição até que todos os alunos conseguissem fazer o mesmo. Sensei Xu sabia, apenas pela audição ou por meio de alguma outra habilidade especial, se algum dos alunos ou alunas ainda se mexia para espantar algum inseto ou havia girado a cabeça para observar um companheiro ao lado, ou se simplesmente estava fazendo qualquer outro movimento que não fosse o suave ritmo da própria respiração.
Para iniciar as aulas de Wushu, era necessário começar por este exercício de concentração e domínio do corpo. Sensei Xu, quando precisava introduzir o exercício às crianças menores, costumava dizer:
—Olhem a tuia! Vejam como ela está firme na terra, mas todos seus ramos, todo seu ser se direciona para o céu! Quero sentir a minha volta um belo parque cheio de tuias! Vocês são as minhas tuias!
Depois que todos havia conseguido fazer o exercício da tuia, Sensei Xu erguia o bastão, às vezes para a direita, às vezes para a esquerda; fazia movimentos rápidos, outras vezes lentamente realizava amplos movimentos circulares e os alunos iam acompanhando os movimentos do bastão do mestre com os respectivos movimentos dos braços e das pernas, exatamente como o velho sensei demonstrava. Mestre Xu usava o bastão para que pudessem visualizar melhor as coreografias do Wushu. Os mais jovens ficavam em círculos menores próximos a rocha onde estava o Sensei, os mais velhos iam formando círculos maiores ao redor, pois eram mais treinados pelos anos de aprendizado e ao perceber os movimentos do bastão, já sabiam qual sequência de exercícios deviam repetir. Cada movimento estava associado a algum elemento ou ser da natureza: agir rápido com a velocidade e leveza do vento, mover-se suave e graciosamente como o filete de água que escorre pela rocha da montanha, abrir os braços de maneira ampla e vigorosa como as asas da grande águia, desenrolar-se cuidadoso e atento como o caracol que sai de sua casa na expectativa de receber os cálidos raios do sol da manhã.
Cada exercício e cada movimento ajudava aos jovens alunos a sentir e a compreender as belas e variadas forças que tecem em todos os seres vivos e nos elementos da natureza. Aprender o Wushu significava aprender a amar e respeitar toda a criação. Neste sentido Sensei Xu era um grande e venerável mestre. Todos os adultos de Feng-Hay lhe tinham uma profunda e respeitosa gratidão, por tudo que eles próprios haviam aprendido em sua juventude com o Sensei, mas também porque sabiam que não havia ninguém mais capacitado que o velho mestre para ensinar às novas gerações.
Houve um verão em que as chuvas foram mais abundantes que o normal. O rio Hou aumentou seu caudal, suas águas torrenciais rugiam violentas ao passar debaixo da ponte que ligava a aldeia ao penhasco de Sensei Xu. Havia tanta água que quando os alunos cruzavam a ponte de cordas, recebiam respingos lançados pela correnteza. Aconteceu um dia que no final da tarde desabou uma chuva forte que prosseguiu por toda a noite. Na manhã seguinte havia parado de chover e as crianças e jovens com alegria se encaminhavam para a ponte para mais uma aula de Wushu com o Sensei. Para surpresa e decepção de todos, a ponte de cordas havia sumido. As violentas águas do rio Hou haviam subido tanto que tinham rompido as amarras da ponte. Foi uma grande tristeza para todos, pois a ponte era a única possibilidade de cruzar até o penhasco do outro lado! Como os alunos fariam para poder a receber as instruções do mestre Xu? Naquele dia a rotina da pacata Feng-Hay foi totalmente desordenada! Todos, crianças, adultos e velhos, vieram à praça central da aldeia e conversavam e discutiam e lamentavam a destruição da ponte! A antiga ponte era utilizada há tantos anos, que ninguém mais se lembrava de quando fora feita. Demoraria muito tempo para conseguirem cordas suficientes e tábuas para construir uma nova ponte. Quanto tempo isto levaria? Talvez meses? Talvez todo um ano? Ninguém sabia dizer… As crianças entristecidas perguntavam a seus pais e avós, quanto tempo eles teriam que esperar até poderem retornar às aulas de Sensei Xu. Muito se conversou, muito se planejou naquele dia e nos que se seguiram, mas era certo que passariam muitos dias até que pudessem reconstruir a ponte.
Do outro lado, Piong-He relatou ao velho mestre que os alunos não poderiam vir, pois a ponte sobre o rio Hou havia sido arrancada pelas águas e acrescentou:
—Nada disto teria acontecido, se não fosse a inconveniente chuva da véspera, que não deu um momento de trégua e que transformou o rio Hou em uma correnteza tão violenta.
Sensei Xu ouviu o aprendiz reclamar e dizer alguns impropérios ainda por alguns minutos, pois como as pessoas na aldeia, o jovem estava muito incomodado com o que havia acontecido. Depois de ficar um bom tempo calado o ancião disse:
—Piong-He, hoje precisamos começar o dia com o exercício do peixe silencioso!
O aprendiz se surpreendeu e perguntou:
—Sensei, o senhor nunca me mostrou este exercício.
Mestre Xu prosseguiu:
—Não mostrei porque supus até agora que não era necessário! O peixe nada sempre em silêncio nas águas serenas ou nas águas agitadas. O peixe nunca se queixa da água, pois ele sabe que precisa dela para viver.
Piong-He corou de vergonha, pois entendeu que o mestre estava falando diretamente a ele por causa da explosão de queixas que havia dito. Seu consolo era que Sensei Xu não poderia ver ser rosto ruborizado!
O ancião continuou:
-Não reclame da água ou do vento. A chuva é uma benção dos céus para a Terra. As águas levaram nossa ponte. Com certeza, isto nos entristece muito, mas quem sabe se há lugares onde estas águas da chuva de ontem serão recebidas com alegria. Você deveria se lembrar que os verões nos últimos anos foram mais secos do que o habitual. Aqui na montanha não nos falta água pois a geleiras nos presenteiam com abundância. Eu visitei na minha juventude as grandes planícies onde se planta o arroz. Se a chuva é pouca, os campos secam e o arroz não sobrevive. Estas chuvas trarão aos plantadores de arroz uma boa colheita e haverá abundância de comida nas tigelas de muitas famílias este ano! O que significa tudo isto, comparado com uma velha ponte de cordas?
Ao ouvir o ensinamento do Sensei, o aprendiz ficou mais envergonhado e com o rosto mais vermelho ainda! Contudo estava contente por ter a oportunidade de conviver com um homem tão sábio e bondoso na arte de ensinar!
—Se o mestre me autorizar, eu gostaria hoje de praticar o exercício do peixe silencioso o dia inteiro. Mostre-me por favor como devo fazer.
Sensei Xu, porém, estava preocupado neste momento com outra questão:
—Diga-me, Piong-He, você consegue ver meus jovens pupilos do outro lado do vale?
O jovem se aproximou da borda do abismo que os separava de Feng-Hay e viu à distância, toda a população da aldeia aglomerada no outro lado.
—Mestre, estão todos gesticulando e caminhando agitados na praça. Parece-me que as crianças também estão por lá, desorientadas no meio dos adultos. Não é possível ouvir o que dizem, por causa da distância e porque as águas do Hou ainda fazem muito ruído.
—Ainda assim não podemos interromper nossas aulas de Wushu! – disse Sensei Xu.
Piong-He, entretanto, questionou o mestre como isto seria possível, visto que as crianças estavam distantes, havia o ruído das águas e mesmo que o mestre fizesse os exercícios eles mal conseguiriam enxergar com nitidez os delicados e precisos gestos do Wushu.
O ancião então lhe disse:
—Piong-He, você vai mostrar para eles o que devem fazer!
O aprendiz ficou surpreso com a tarefa. Como poderia cumpri-la? Apenas se tivesse as asas da grande águia, poderia voar até a aldeia e mostrar as sequências de exercícios, pois ao longo dos anos com o Sensei, ele já havia aprendido bastante. Mestre Xu, contudo, havia pensado outra maneira. Pediu a Piong-He que buscasse no interior da cabana umas pedras brancas e macias, que estavam guardadas num canto. Quando o jovem regressou com as pedras, o Sensei lhe instruiu detalhadamente o que deveria fazer.
Piong-He tocou o sino. Desta vez com maior intensidade para que os alunos pudessem escutar.
Sensei Xu, como todos os dias, subiu na rocha e se posicionou com o bastão de tuia.
Do outro lado as pessoas se surpreenderam ao escutar as pancadas no sino e foram fazendo silêncio. Naquele instante ficou evidente para todos que a aula de Wushu começaria. Mesmo os adultos se posicionaram com os pés firmes no chão, com atenção no céu, quietos e atentos apenas ao sereno ritmo da própria respiração. Ninguém conseguir visualizar o Sensei. À distância era uma figura pequenina. Entretanto no paredão de rocha escura atrás da plataforma do mestre, Piong-He riscava a rocha com a pedra branca e macia, deixando um longo traço vertical, grande o suficiente para que todos pudesse ver.
Todos logo compreenderam: aquele traço vertical representava o bastão de tuia do mestre, que estava pedindo que todos fizessem o exercício da tuia!
No momento seguinte, o aprendiz desenhou outros traços, seguindo os movimentos no ar do bastão do sensei. No outro lado os alunos iam identificando as formas desenhadas e repetiam com seus membros os movimentos correspondentes. Assim prossegui a aula: Sensei Xu executava um movimento, Piong-He o transcrevia com traços retos ou curvos no paredão escuro de rocha, do outro lado, as crianças, os jovens e até mesmo os adultos imitavam a sequência olhando os desenhos e relembrando os movimentos do Wushu.
Nos dias que sucederam, as aulas continuaram deste modo.
Dentro do possível, a vida voltou à rotina normal. Todas as manhas, na borda do abismo do rio Hou, os alunos de Sensei Xu aguardavam as batidas do sino e os desenhos de traços no paredão rochoso para iniciar as diversas sequência de movimentos de Wushu.
Piong-He se esmerava cada dia mais para que seus desenhos ilustrassem da melhor maneira os precisos movimentos do mestre.
Como todas as noites o orvalho dissolvia os desenhos feitos com a rocha macia no dia anterior, a cada manhã o paredão estava limpo e preparado para os novos desenhos daquele dia.
Demorou quase um ano, até que conseguiram reconstruir a ponte. Quando ela ficou pronta, os alunos juntos com todos habitantes da aldeia cruzaram para agradecer ao Sensei e ao seu aprendiz. Com a ajuda de ambos, foi possível prosseguir com as instruções de Wushu, apesar da separação que o abismo lhe impunha.
Para não se esquecer, Piong-He registrou com pincel e tinta em pedaços de couro os vários desenhos que havia criado a partir dos movimentos de Sensei Xu.
Conta-se também que talvez esta tenha sido a origem daquela escrita em ideogramas, semelhante à de muitos povos que vivem no Oriente.
Justamente por ter criado esta arte de comunicação, Piong-He desenvolveu-se muito bem na prática do exercício do “peixe silencioso”, pois para desenhar os ideogramas (e também as nossas letras modernas) é útil manter o silêncio, a concentração e o cuidado no manejo do pincel (ou do lápis), assim o desenho ou a letra adquirem a harmonia e a beleza do traço preciso e, deste modo, podem transmitir a quem os vê a mensagem que representam, mas isto faz parte de outra história…

Renato Gomes

Nota: Dedico este conto aos professores e a todos os que durante este período de isolamento social estão se empenhando e desenvolvendo maneiras novas e criativas para manter o contato com seus alunos e transmitir-lhes de algum modo os conteúdos e as informações que os ajudem neste momento de distanciamento das escolas/instituições de ensino. Parabéns a todos estes profissionais pelos esforços!

 Renato Gomes