A comunhão substancial: pão e vinho como remédio sanante

Resumo da palestra dominical de 02/08/2020

Em todo desenvolvimento podemos observar o desenvolvimento da consciência. Os diferentes seres têm consciências distintas. É difícil, para nós, compreender o que significa a consciência de uma pedra. Já para uma planta, podemos imaginar uma consciência com uma qualidade similar à nossa, quando estamos em um sono profundo, e, por assim dizer, em um estado vegetativo. Os animais têm uma consciência semelhante à nossa consciência de sonho, mesmo quando estão acordados, como se fossem sonâmbulos. Podemos sentir isso ao comparar a nossa consciência desperta, onde temos, além da qualidade da consciência de um animal, também a nossa autoconsciência. E se passamos para a esfera dos anjos, encontramos consciências sempre superiores à nossa, sempre mais abrangentes, até chegar a uma consciência plena, de tudo e de todos, o que chamamos Deus. Todo o desenvolvimento é, assim, o desenvolvimento da consciência. Mas para que ocorra esse desenvolvimento, cada ser necessita de um corpo, que esteja adequado à sua consciência. Por isso o corpo de uma pedra é diferente do corpo de uma planta ou de um animal. Nós temos o nosso corpo, que corresponde ao estado da nossa consciência. E os anjos, nas distintas hierarquias, têm seus corpos celestes, cada um de acordo com a sua consciência. Temos assim duas evoluções que ocorrem paralelamente e que são interdependentes entre si: a evolução do corpo e a evolução da consciência. Em nossa época de evolução, nós, seres humanos, estamos na etapa de desenvolvermos o nosso eu.

Assim as perguntas que podem nos interessar neste contexto são:

  • Quais são as metas desse desenvolvimento?

  • Qual o caminho para alcançar essas metas?

  • O que pode nos ajudar e o que pode nos dificultar nesse caminho?

E no contexto do nosso tema podemos ainda perguntar:

  • Qual o papel da comunhão para o desenvolvimento do nosso eu?

A meta do desenvolvimento do ser humano, aqui na Terra, é que nos tornemos individualidades livres. Podemos ver a liberdade como uma das principais metas para o desenvolvimento do nosso eu. O caminho que proporciona esse desenvolvimento nos leva, necessariamente, a um período de separação da nossa origem divina espiritual. Pois só em um espaço livre da atuação direta do mundo divino espiritual, se cria a possibilidade do ser humano desenvolver a sua própria liberdade. Podemos reconhecer, assim, a intenção divina de possibilitar o desenvolvimento do ser humano como uma individualidade livre, pois, desde o primeiro momento da criação do mundo, temos o impulso da separação: Deus cria a luz, e separa a luz das trevas. Separa as águas. Separa os mares dos continentes. Separa o ser humano em um ser masculino e um ser feminino, Adão e Eva. E, por último, separa o ser humano do paraíso, o afasta da sua origem divino espiritual. São passos necessários para criar um espaço livre, onde o ser humano possa desenvolver a sua autoconsciência e a sua liberdade. Se nós tivéssemos permanecido no paraíso, unidos com o divino, nunca teríamos tido a possibilidade de desenvolver o nosso sonho, nos desenvolvermos como individualidades livres. Nos separamos do mundo divino espiritual, desenvolvemos uma autoconsciência fundamentada na qualidade da separação, estamos a caminho de nos desenvolvermos como individualidades livres, mas correndo o perigo de, nessa liberdade, perdermos o relacionamento com a nossa origem divino espiritual e, assim, que a liberdade seja apenas separação e não, realmente, o desenvolvimento do eu, da individualidade com qualidade humana. Assim, podemos ver o caminho do nosso desenvolvimento em quatro etapas:

  • Iniciamos a nossa existência no estado paradisíaco, unidos com o divino espiritual, mas sem autoconsciência e liberdade.

  • Nos separamos do paraíso, estamos a caminho de desenvolver o nosso eu em liberdade, mas corremos o risco de perder o relacionamento com a nossa origem divino espiritual.

  • Temos a tarefa de procurar um novo relacionamento com o divino espiritual, mas autoconscientes e em liberdade. Isso significa desenvolver uma autoconsciência, a partir da decisão livre de querer se unir com o outro. Podemos também dizer: querer aprender a amar.

  • Temos como meta do desenvolvimento, nos unirmos com o divino espiritual, em liberdade, no âmbito do nosso eu.

Assim, podemos ver que a comunhão e a separação formam uma polaridade necessária ao nosso desenvolvimento. As quatro etapas também podem ser assim descritas:

  • Comunhão sem liberdade.

  • Liberdade a partir da separação.

  • Superação da separação, pela decisão livre de querer aprender a amar.

  • Comunhão em liberdade.

Podemos ver os processos de separação em três níveis dos nossos relacionamentos: no relacionamento com a natureza, no relacionamento social e no relacionamento com o mundo espiritual. E podemos ver esses três níveis também nos processos de comunhão: a comunhão substancial, a comunhão social e a comunhão espiritual. No Ato de Consagração do Homem encontramos os impulsos para fortalecer o nosso eu, no caminho de superar a separação e alcançar a comunhão nesses três âmbitos: no relacionamento com a natureza, com corpo e o sangue, pela comunhão com pão e o vinho; nos relacionamentos sociais pela comunhão na paz; no relacionamento consciente com o divino, pela comunhão espiritual por meio do pensar.

Hoje queremos abordar o primeiro nível, a comunhão substancial do pão e do vinho.
O sacramento da Eucaristia está, desde a origem do cristianismo, relacionado à comunhão com o pão e o vinho. E isso tem, evidentemente, um relacionamento com a Santa Ceia. Mas na Santa Ceia nos deparamos com um enigma. A data da Santa Ceia tem a ver com a cultura judaica, com a festa de Pessach, que se tornou a nossa festa da Páscoa. A Santa Ceia foi celebrada na primeira lua cheia, depois do solstício da primavera. Mas Pessach é celebrada com o sacrifício do cordeiro, em recordação ao êxodo do Egito. Não existia, naquela época, uma tradição judaica de celebrar Pessach com pão e vinho. O momento em que a Santa Ceia aconteceu, segue a tradição judaica, a festa de Pessach, o culto levita. Mas o modo como aconteceu, compartilhando o pão e o vinho, não tem raízes na tradição judaica. De onde vem o impulso do Jesus Cristo de celebrar Pessach com a comunhão com o pão e o vinho? No Antigo Testamento encontramos uma única referência a um culto feito com pão e vinho, em Gênesis, no capítulo 14. Toda a cultura judaica foi iniciada por Abrão. Na época em que ainda ocupavam as terras da Palestina houve uma guerra em que Ló, o filho do irmão de Abrão, foi preso após ser derrotado numa batalha. Abrão saiu com seus guerreiros para libertar o sobrinho. Ele venceu os inimigos e libertou Ló. Quando está no caminho de volta, Abrão segue primeiro até o lugar da atuação de um sacerdote rei, que servia o Deus Altíssimo: Melquisedeque. Abrão oferece o dízimo de tudo o que conquistou, recebe a comunhão com pão e vinho e a benção do Deus altíssimo. Essa é a única referência ao culto em que Melquisedeque celebrava com pão e vinho, servindo o Deus Altíssimo. A Antroposofia pode nos ajudar a compreender o significado de Melquisedeque e o culto com pão e vinho.
Na formação da cultura judaica existiram duas correntes: uma corrente exotérica voltada para o povo, fundamentada nas festas e no culto levita; e uma outra corrente, esotérica, cultivada por poucos iniciados, fundamentada no culto de Melquisedeque, na comunhão com pão e vinho. Na Santa Ceia essas duas correntes fluem em conjunto: a festa esotérica de Pessach, e o culto esotérico com pão e vinho. O rei Davi, em seu salmo 110, já cita profeticamente o Senhor como sacerdote na ordem de Melquisedeque. E no Novo Testamento, na carta aos Hebreus, encontramos, muito ressaltada, a importância de reconhecer que o Jesus Cristo é o sacerdote na ordem de Melquisedeque.
Na Santa Ceia essas duas correntes fluem juntas: a exotérica e a esotérica. Assim a Eucaristia tem um significado exotérico, voltado para o povo, e um significado esotérico, voltado àqueles que querem reconhecer a essência espiritual do culto. O significado exotérico, popular, podemos resumir numa recordação da Santa Ceia, que aconteceu na Quinta-feira Santa e no sentimento de estarmos, em nossa alma, unidos com o Cristo, quando recebemos a comunhão do pão e do vinho. Mas qual é o significado esotérico da Eucaristia, da comunhão com pão e vinho? Para encontrarmos uma resposta para essa pergunta precisamos voltar à questão: o que necessita o eu para se desenvolver? Necessitamos da separação do mundo espiritual para desenvolver autoconsciência e liberdade. Mas corremos o perigo de perder o relacionamento com a nossa origem divina. Por isso é necessário renovar continuamente o relacionamento com a nossa origem. Mas no anseio de nos religarmos com o mundo divino espiritual, corremos o risco de perder o impulso de desenvolver o nosso eu em liberdade. A solução para esse paradoxo está na sabedoria divina, ao ter estabelecido um ritmo de mudança entre esses dois estados. Num primeiro nível temos esse ritmo entre vigília e sono. Na vigília estamos autoconscientes, desenvolvendo o nosso eu em liberdade, mas separados do mundo divino espiritual. No sono estamos unidos com a nossa origem divino espiritual, mas inconscientes, sem a possibilidade de desenvolver o nosso eu. A cada dia podemos fazer experiências de aprender algo novo. A cada noite podemos nos revitalizar e digerir essas experiências. No dia seguinte podemos continuar aprendendo. Mas para podermos seguir um caminho de aprendizagem durante a nossa biografia, precisamos, no momento em que acordamos, retomar a vida que tínhamos no dia anterior. Aqui temos um grande mistério da nossa vida. A nossa autoconsciência é descontínua. Durante a noite não temos uma autoconsciência. Temos nossa autoconsciência durante a vigília e a perdemos no sono. Para podermos desenvolver o nosso eu, precisamos de uma ajuda que supere a descontinuidade, que nos possibilite nos sentirmos hoje os mesmos que éramos ontem. De outro modo, começaríamos cada dia sempre de novo, do começo, não seria possível aprender, pois aquilo que conquistamos durante o dia perderíamos durante a noite. Não seria possível se desenvolver durante a biografia. O que nos ajuda a nos sentirmos nós mesmos, quando acordamos em um novo dia é, por um lado, o nosso corpo físico. Acordamos todos os dias com o mesmo corpo. Por outro lado, o que nos ajuda é o nosso corpo etérico, pois ele é a base das nossas recordações. Acordar sempre no mesmo corpo físico e se recordar do que aconteceu no dia anterior, é o que nos ajuda a manter a consciência do nosso eu, apesar da descontinuidade da nossa autoconsciência.
Foi dito que a meta do nosso desenvolvimento aqui na Terra é desenvolver o nosso eu em liberdade. Mas um aspecto muito importante do desenvolvimento da liberdade reside no fato de que, paralelamente, necessitamos desenvolver a responsabilidade. A maturidade de um eu revela-se no impulso de assumir a responsabilidade por aquilo que se faz ou se deixa de fazer. Podemos ter hoje a liberdade de decidir fazer algo, ou não. Mas amanhã, aquilo que hoje é exercício da liberdade terá de se transformar em minha responsabilidade. Para isso, nosso relacionamento com a recordação e a consciência contínua do eu na biografia, são essenciais. Desenvolvemos esses processos durante uma vida, no ritmo de vigília e sono. Mas uma única biografia não é suficiente para desenvolvermos o nosso eu. Precisamos de várias biografias, de várias vidas. Aqui temos o segundo nível da atuação da sabedoria divina para nos ajudar no desenvolvimento do nosso eu: o ritmo entre estar encarnado na Terra e o período entre a morte de um novo nascimento. Assim como na vigília e no sono temos o ritmo entre estarmos autoconscientes para desenvolvermos o nosso eu, e estarmos unidos com a nossa origem divino espiritual, temos essa mesma qualidade, mas de uma forma ainda mais profunda, no ritmo de estarmos encarnados ou não. Se já entre a vigília e o sono temos uma descontinuidade da nossa autoconsciência, essa descontinuidade é muito mais profunda entre o tempo que estamos encarnados e o tempo que estamos no caminho entre morte de um novo nascimento. Quando acordamos, todas as manhãs, temos a ajuda de estarmos sempre no mesmo corpo para nos recordarmos do dia anterior. Isso possibilita a continuidade da consciência do nosso eu. Mas quando morremos, nosso corpo físico se decompõe no âmbito terrestre. E nosso corpo etérico se dissolve no âmbito etérico. Nascemos com um novo corpo físico e com um novo corpo etérico. Em um novo corpo, não nos sentimos os mesmos que fomos na vida passada, e não podemos dela nos recordar. O que assegura a continuidade do eu de uma encarnação para outra? O que nos ajuda a continuar com nosso desenvolvimento sem perder os frutos da vida passada? A ajuda que temos para prosseguir o desenvolvimento do nosso eu, o que forma a ponte entre duas encarnações, é o nosso carma. Nascemos com novo corpo físico e etérico. Mas nascemos com dons e deficiências que estão impregnados em nossos corpos. Os dons e as deficiências que temos em nossa constituição são as recordações da vida passada. No relacionamento com nosso corpo físico e etérico, com os nossos dons e, muito mais ainda, com as nossas deficiências, podemos desenvolver a continuidade da consciência do nosso eu entre as encarnações.
A sabedoria divina da formação do carma tem a mesma qualidade da digestão em nosso metabolismo. Pela alimentação proporcionamos a revitalização do nosso corpo etérico e a formação do nosso corpo físico. Sobre as substâncias da terra e dos processos de alimentação poderíamos dizer: nos alimentamos de pão e vinho, digerimos, e transformamos o pão em nosso corpo, o vinho em nosso sangue. Isso é como uma imagem arquetípica. A transubstanciação é uma realidade fisiológica em cada um de nós. Sobre a formação do carma como uma digestão cósmica: as experiências desta vida serão digeridas nos processos pós-morte e se transformarão no corpo físico e etérico da próxima vida. As experiências são como o pão e o vinho, que se transubstanciarão em corpo e sangue, em uma próxima vida. A formação do carma estabelece o equilíbrio entre as experiências aqui na Terra e o relacionamento com o divino espiritual, com a sabedoria cósmica.
No arquétipo do pão temos a qualidade do nosso relacionamento com a Terra, com o impulso de nos encarnarmos. No arquétipo do vinho temos a qualidade do nosso relacionamento com o mundo espiritual, com o impulso de nos excarnarmos. Necessitamos encontrar o equilíbrio entre essas duas tendências. O que nos ajuda a encontrar o equilíbrio entre matéria e espírito, entre querer desenvolver o próprio eu e almejar estar unido com a nossa origem divino espiritual, é o impulso do Cristo. Encontrar esse equilíbrio é o que nos leva a desenvolver o nosso eu de uma forma sadia. Cristo, aquele que nos ajuda a encontrar o equilíbrio, é o representante da qualidade humana em nós, é o representante da humanidade.
Quando celebramos a Eucaristia no Ato de Consagração do Homem, e recebemos a comunhão do pão e do vinho, escutamos as palavras que indicam que o sacramento é o remédio sanante, para curar a doença do pecado. Podemos nos perguntar: o que sana a doença do pecado?
No cristianismo se desenvolveu a prática da absolvição do pecado. Com certeza receber a absolvição dos nossos pecados nos faz sentir animicamente bem. Mas será que é uma ajuda para o desenvolvimento do nosso eu? Em relação a uma criança, que ainda não desenvolveu a possibilidade de assumir toda a consequência por aquilo que faz, é necessário que os pais assumam a responsabilidade e vejam, de uma forma pedagógica, o que é possível oferecer de consequência para criança. Proceder sempre assim, em relação ao jovem, ou muito mais, em relação a um adulto, não seria realmente uma ajuda, seria um empecilho para o desenvolvimento do eu. Hoje, no século XXI, o que sana a doença do pecado não é a absolvição, mas uma força que ajude o eu a assumir responsabilidade por aquilo que faz ou deixa de fazer. Durante a nossa biografia, necessitamos desse impulso de querer assumir a responsabilidade. Mas disso necessitamos ainda mais entre duas encarnações. Precisamos não apenas assumir a responsabilidade por aquilo que fizemos nesta biografia, mas também por aquilo que fizemos numa vida passada.
Quando no altar celebramos a transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue do Cristo, e recebemos a comunhão, estamos recebendo uma ajuda para a formação do nosso carma futuro e, assim, uma ajuda para o desenvolvimento do nosso eu. Na antiguidade essa ajuda estava sob responsabilidade de poucos iniciados, como Melquisedeque. Na Santa Ceia, o Cristo renovou o sacramento do pão e do vinho, se unindo, ele próprio, com seu corpo e seu sangue, no impulso de ajudar o eu humano a formar um carma.
Hoje, é importante que sempre mais pessoas despertem para esse conhecimento e para o impulso de querer desenvolver o próprio eu, em liberdade e responsabilidade.
Quando recebemos a comunhão do pão e do vinho no Ato de Consagração do Homem é completamente válido que nos sentimos animicamente unidos com Cristo. Mas precisamos extirpar da nossa alma o desejo de receber uma absolvição dos nossos pecados. O que podemos receber do Cristo, através da comunhão com o pão e o vinho, é a ajuda de desenvolver a força do nosso eu para assumir a responsabilidade por tudo o que fazemos ou deixamos de fazer, tanto nesta vida como numa vida futura.

João F. Torunsky